sexta-feira, 3 de novembro de 2017

DESPERTANDO O CONHECIMENTO - A CHAVE DOS GRANDES MISTÉRIOS por Eliphas Levi

A CHAVE DOS GRANDES MISTÉRIOS

A Chave dos Grandes Mistérios De acordo com Henoch, Abraão, Hermes Trismegisto e Salomão




A religião diz: Acreditai e compreendereis. A ciência vem vos dizer: Compreendei e acreditareis. "Então, toda a ciência mudará de fisionomia; o espírito, por muito tempo destronado e esquecido, retomará seu lugar; será demonstrado que as tradições antigas são inteiramente verdadeiras; que o paganismo não passa de um sistema de verdades corrompidas e deslocadas; que basta limpá-las, por assim dizer, e recolocá-las em seu lugar, para vê-las brilhar com todo o esplendor. Em uma palavra, todas as idéias mudarão; e, uma vez que, de todos os lados, uma multidão de eleitos clama em concerto: "Vinde, Senhor, vinde!", por que reprovaríeis os homens que se lançam nesse futuro majestoso e se glorificam de adivinhá-lo?"

Joseph de Maistre,

Soirées de Saint-Pétersbourg

PREFÁCIO

Os espíritos humanos têm a vertigem do mistério. O mistério é o abismo que atrai, sem cessar, nossa curiosidade inquieta por suas formidáveis profundezas.

O maior mistério do infinito é a existência de Aquele para quem e somente para Ele - tudo é sem mistério.

Compreendendo o infinito, que é essencialmente incompreensível, ele próprio é o mistério infinito e externamente insondável, ou seja, ele é, ao que tudo indica, esse absurdo por excelência, em que acreditava Tertuliano.

Necessariamente absurdo, uma vez que a razão deve renunciar para sempre a atingi-lo; necessariamente crível, uma vez que a ciência e a razão, longe de demonstrar que ele não é, são fatalmente levadas a deixar acreditar que ele é, e elas próprias a adorá-lo de olhos fechados.

É que esse absurdo é a fonte infinita da razão, a luz brota eternamente das trevas eternas, a ciência, essa Babel do espírito, pode torcer e sobrepor suas espirais subindo sempre; ela poderá fazer oscilar a Terra, nunca tocará o céu.

Deus é o que aprenderemos eternamente a conhecer. É, por conseguinte, o que nunca saberemos.

O domínio do mistério é um campo aberto às conquistas da inteligência. Pode-se andar nele com audácia, nunca se reduzirá sua extensão, mudar-se-á somente de horizontes. Todo saber é o sonho do impossível, mas ai de quem não ousa aprender tudo e não sabe que, para saber alguma coisa, é preciso resignar-se-a estudar sempre!

Dizem que para bem aprender é preciso esquecer várias vezes. O mundo seguiu esse método. Tudo o que se questiona em nossos dias havia sido resolvido pelos antigos; anteriores a nossos anais, suas soluções escritas em hieróglifos não tinham mais sentido para nós; um homem reencontrou sua chave, abriu as necrópoles da ciência antiga e deu a seu século todo um mundo de teoremas esquecidos, de sínteses simples e sublimes como a natureza, irradiando sempre unidade e multiplicando-se como números, com proporções tão exatas quanto o conhecimento demonstra e revela o desconhecido. Compreender essa ciência é ver Deus. O autor deste livro, ao terminar sua obra, acreditará tê-lo demonstrado.

Depois, quando tiverdes visto Deus, o hierofante vos dirá: Virai-vos e, na sombra que projetais na presença desse sol das inteligências, ele fará aparecer o Diabo, o fantasma negro que vedes quando não olhais para Deus e quando acreditais ter preenchido o céu com vossa sombra, porque os vapores da terra parecem tê-la feito crescer ao subir.

Pôr de acordo, na ordem religiosa, a ciência com a revelação e a razão com a fé, demonstrar em filosofia os princípios absolutos que conciliam todas as antinomias, revelar enfim o equilíbrio universal das forças naturais, tal é a tripla finalidade desta obra, que será, por conseguinte, dividida em três partes.

Mostraremos a verdadeira religião com caracteres tais que ninguém, crente ou não, poderá desconhecê-la, será o absoluto em matéria de religião. Estabeleceremos, em filosofia, os caracteres imutáveis dessa verdade, que é, em ciência, realidade, em julgamento, razão e, em moral, justiça. Enfim, faremos conhecer estas leis da natureza cujo equilíbrio é o sustento e mostraremos o quanto são vãs as fantasias de nossa imaginação diante das realidades fecundas do movimento e da vida. Convidaremos também os grandes poetas do futuro para refazerem a divina comédia, não mais de acordo com os sonhos do homem, mas segundo as matemáticas de Deus.

Mistério dos outros mundos, forças ocultas, revelações estranhas, doenças misteriosas, faculdades excepcionais, espíritos, aparições, paradoxos mágicos, arcanos herméticos, diremos tudo e explicaremos tudo. Quem pois nos deu esse poder? Não tememos revelá-lo a nossos leitores.

Existe um alfabeto oculto e sagrado que os hebreus atribuem a Henoch, os egípcios a Tot ou a Mercúrio Trismegisto, os gregos a Cadmo e a Palamédio. Esse alfabeto, conhecido pelos pitagóricos, compõe-se de idéias absolutas ligadas a signos e a números e realiza, por suas combinações, as matemáticas do pensamento. Salomão havia representado esse alfabeto por setenta e dois nomes escritos em trinta e seis talismãs e é o que os iniciados do Oriente denominam ainda de as pequenas chaves ou clavículas de Salomão. Essas chaves são descritas e seu uso é explicado num livro cujo dogma tradicional remonta ao patriarca Abraão, é o Sepher Yétsirah, e, com a inteligência do Sepher Yétsirah, penetra-se o sentido oculto do Zohar, o grande livro dogmático da Cabala dos hebreus. As clavículas de Salomão, esquecidas com o tempo e que se dizia estarem perdidas, nós as encontramos, e abrimos sem dificuldade todas as portas dos antigos santuários, onde a verdade absoluta parecia dormir, sempre jovem e sempre bela, como aquela princesa de um conto infantil que espera durante um século de sono o esposo que deve despertá-la.

Depois de nosso livro, ainda haverá mistérios, mas mais alto e mais longe nas profundezas infinitas. Esta publicação é uma luz ou uma loucura, uma mistificação ou um monumento. Lede, refleti e julgai.

Primeira Parte
Mistérios Religiosos
Problemas a resolver

I. Demonstrar de uma maneira certa e absoluta a existência de um Deus e dela dar uma idéia satisfatória para todos os espíritos.
II. Estabelecer a existência de uma verdadeira religião de maneira a torná-la incontestável.
III. Indicar o alcance e a razão de ser de todos os mistérios da religião única, verdadeira e universal.
IV. Transformar as objeções da filosofia em argumentos favoráveis à verdadeira religião.
V. Traçar o limite entre a religião e a superstição e dar a razão dos milagres e dos prodígios.
Considerações preliminares
Quando o conde Joseph de Maistre, este grande lógico apaixonado, disse com desespero: O mundo está sem religião, assemelhou-se àqueles que dizem temerariamente: Deus não existe.
O mundo, com efeito, está sem a religião do conde Joseph de Maistre, assim como é provável que Deus, tal qual o concebe a maioria dos ateus, não exista.
A religião é uma idéia apoiada num fato constante e universal; a humanidade é religiosa: a palavra religião tem, portanto, um sentido necessário e absoluto. A própria natureza consagra a idéia que representa essa palavra e a eleva à altura de um princípio.
A necessidade de crer liga-se estreitamente à necessidade de amar: é por isso que as almas têm necessidade de comungar com as mesmas esperanças e com o mesmo amor. As crenças isoladas não passam de dúvidas: é o laço da confiança mútua que faz a religião ao criar a fé.
A fé não se inventa, não se impõe, não se estabelece por convicção política; manifesta-se, como a vida, com uma espécie de fatalidade. O mesmo poder que dirige os fenômenos da natureza estende e limita, além de todas as previsões humanas, o domínio sobrenatural da fé. Não se imaginam as revelações, elas se impõem, e nelas se crê. Por mais que o espírito proteste contra as obscuridades do dogma, está subjugado pela atração dessas mesmas obscuridades, e freqüentemente o mais indócil dos pensadores coraria em aceitar o título de homem sem religião.
A religião ocupa um espaço bem maior entre as realidades da vida do que pretendem crer aqueles que dispensam a religião ou que têm a pretensão de dispensá-la. Tudo o que eleva o homem acima do animal, o amor moral, a abnegação, a honra são sentimentos essencialmente religiosos. O culto da pátria e do lar, a religião do juramento e das lembranças são coisas que a humanidade jamais abjurará sem se degradar completamente, e que não saberiam existir sem a crença em alguma coisa maior do que a vida mortal, com todas as suas vissicitudes, suas ignorâncias e suas misérias.
Se a perda eterna no nada tivesse de ser o resultado de todas as nossas aspirações às coisas sublimes que sentimos serem eternas, a fruição do presente, o esquecimento do passado e a displicência para com o futuro seriam nossos únicos deveres, e seria rigorosamente verdadeiro dizer, com um sofista célebre, que o homem que pensa é um animal degradado.
Por isso, de todas as paixões humanas, a paixão religiosa é a mais poderosa e a mais vivaz. Produz-se seja pela afirmação seja pela negação, com igual fanatismo, uns afirmando com obstinação o deus que fizeram à sua imagem, outros negando Deus com temeridade, como se tivessem podido compreender e devastar por um único pensamento todo o infinito que está ligado a seu grande nome.
Os filósofos não refletiram suficientemente sobre o fato fisiológico da religião na humanidade: a religião, com efeito, existe além de toda discussão dogmática. É uma faculdade da alma humana, da mesma forma que a inteligência e o amor. Enquanto houver homens, a religião existirá. Considerada assim, ela não é outra coisa que a necessidade de um idealismo infinito, necessidade que justifica todas as aspirações ao progresso, que inspira todas as abnegações, que sozinha impede a virtude e a honra de serem unicamente palavras que servem para iludir a vaidade dos fracos e dos tolos em proveito dos fortes e dos hábeis.
É a essa necessidade inata de crença que se poderia dar o nome de religião natural, e tudo o que tende a diminuir e limitar o impulso dessa crença está, na ordem religiosa, em oposição à natureza. A essência do objeto religioso é o mistério, uma vez que a fé começa no desconhecido e abandona todo o resto às investigações da ciência. A dúvida é, aliás, mortal à fé; ela sente que a intervenção do ser divino é necessária para cobrir o abismo que separa o finito do infinito e afirma essa intervenção com todo o ímpeto de seu coração, com toda a docilidade de sua inteligência. Fora desse ato de fé, a necessidade religiosa não encontra satisfação e transmuta-se em ceticismo e em desespero. Mas, para que o ato de fé não seja um ato de loucura, a razão quer que ele seja dirigido e regulado. Pelo quê? Pela ciência? Vimos que nesse caso a ciência é impotente. Pela autoridade civil? É absurdo. Colocai guardas para vigiar as orações!
Resta, pois, a autoridade moral, única que pode constituir o dogma e estabelecer a disciplina do culto de comum acordo, dessa vez, com a autoridade civil, mas não conforme às suas ordens; é preciso, em uma palavra, que a fé dê à necessidade religiosa uma satisfação real, inteira, permanente, indubitável. Para tanto, é preciso a afirmação absoluta, invariável, de um dogma conservado por uma hierarquia autorizada. É preciso um culto eficaz que dê, com uma fé absoluta, uma realização substancial aos signos da crença.
A religião, assim compreendida, sendo a única que satisfaz a necessidade natural de religião, deve ser chamada de a única verdadeiramente natural. E chegamos por nós mesmos a esta dupla definição: a verdadeira religião natural é a religião revelada, é a religião hierárquica e tradicional, que se afirma absolutamente acima das discussões humanas pela comunhão da fé, da esperança e da caridade.
Ao representar a autoridade moral e ao realizá-la pela eficácia de seu ministério, o sacerdote é santo e infalível, enquanto a humanidade está sujeita ao vício e ao erro. O padre, ao agir como padre, é sempre o representante de Deus. Pouco importam as faltas ou mesmo os crimes do homem. Quando Alexandre VI fazia uma ordenação, não era o envenenador que impunha as mãos aos bispos, era o papa. Ora, o papa Alexandre VI nunca corrompeu nem falsificou os dogmas que o condenavam, os sacramentos que, em suas mãos, salvavam os outros e não o justificavam. Houve sempre e em todos os lugares homens mentirosos e criminosos; mas, na Igreja hierárquica e divinamente autorizada, nunca houve e nunca haverá nem maus papas nem maus padres. Mau e padre são palavras que não se ajustam.
Falamos de Alexandre VI e acreditamos que esse nome baste, sem que nos oponham outras lembranças justamente execradas. Grandes criminosos puderam duplamente desonrar-se, por causa do caráter sagrado de que estavam revestidos; mas não lhes foi dado desonrar esse caráter, que continua sempre radiante e esplêndido acima da humanidade que cai.
Dissemos que não há religião sem mistérios; acrescentemos que não há mistérios sem símbolos. Sendo o símbolo a fórmula ou a expressão do mistério, ele só exprime sua profundidade desconhecida por imagens paradoxais emprestadas do conhecido. Devendo caracterizar o que está acima da razão científica, a forma simbólica deve necessariamente encontrar-se fora dessa razão: daí, a palavra célebre e perfeitamente justa de um Pai da Igreja: Creio, porque é absurdo, credo quia absurdum.
Se a ciência afirmasse o que não sabe, destruiria a si própria. A ciência não pode, portanto, realizar a obra da fé, tanto quanto a fé não pode decidir em matéria de ciência. Uma afirmação de fé com que a ciência tenha a temeridade de ocupar-se será apenas um absurdo para ela, da mesma forma que uma afirmação de ciência que nos fosse dada como artigo de fé seria um absurdo na ordem religiosa. Crer e saber são dois termos que nunca se podem confundir.
Tampouco poderiam opor-se um ao outro num antagonismo qualquer. É impossível, com efeito, crer no contrário do que se sabe sem deixar, por isso mesmo, de o saber, e é igualmente impossível chegar a saber o contrário do que se crê sem deixar imediatamente de crer.
Negar ou mesmo contestar as decisões da fé, e isso em nome da ciência, é provar que não se compreende nem a ciência nem a fé: com efeito, o mistério de um Deus em três pessoas não é um problema de matemática; a encarnação do Verbo não é um fenômeno que pertença à medicina; a redenção escapa à crítica dos historiadores. A ciência é absolutamente impotente para decidir se se tem ou não razão de se acreditar ou não no dogma; ela pode constatar somente os resultados da crença e, se a fé torna evidentemente os homens melhores, se, aliás, a fé em si mesma, considerada como um fato fisiológico, é evidentemente uma necessidade e uma força, será preciso que a ciência o admita e tome o sábio partido de contar sempre com a fé.
Ousemos afirmar agora que existe um fato imenso, igualmente apreciável pela fé e pela ciência, um fato que torna Deus visível de algum modo sobre a terra, um fato incontestável e de alcance universal; esse fato é a manifestação, no mundo, a partir da época em que começa a revelação cristã, de um espírito desconhecido pelos antigos, de um espírito evidentemente divino, mais positivo que a ciência em suas obras, mais magnificamente ideal em suas aspirações que a mais elevada poesia, um espírito para o qual era preciso criar um nome novo, completamente inaudito nos santuários da Antigüidade. Assim, esse nome foi criado, e demonstraremos que esse nome, que essa palavra é, em religião, tanto para a ciência quanto para a fé, a expressão do absoluto; a palavra é caridade e o espírito de que falamos chama-se o espírito de caridade.
Diante da caridade, a fé prosterna-se e a ciência, vencida, inclina-se. Há evidentemente aqui alguma coisa maior do que a humanidade; a caridade prova por suas obras que não é um sonho. É mais forte do que todas as paixões; triunfa sobre o sofrimento e a morte; faz que Deus seja compreendido por todos os corações e parece já preencher a eternidade pela realização iniciada de suas legítimas esperanças.
Diante da caridade viva e atuante, que Proudhon ousará blasfemar? Que Voltaire ousará rir?
Empilhai, um sobre os outros, os sofismas de Diderot, os argumentos críticos de Strauss, as Ruínas de Volney - tão bem nomeadas, pois esse homem não poderia fazer senão ruínas -, as blasfêmias dessa revolução cuja voz extingue-se uma vez no sangue e outra no silêncio do desprezo; acrescentei a isso o que o futuro pode nos reservar de monstruosidades e devaneios; depois, que venha a mais humilde e a mais simples de todas as irmãs da caridade, o mundo abandonará todas as suas tolices, todos os seus crimes, todos os seus devaneios doentios, para inclinar-se diante dessa realidade sublime.
Caridade! palavra divina, palavra que, por si, leva à compreensão de Deus, palavra que contém uma revelação inteira! Espírito de caridade, aliança de duas palavras que são toda uma solução e todo um futuro! Que pergunta, com efeito, essas duas palavras não podem responder?
O que é Deus para nós senão o espírito de caridade? o que é a ortodoxia? não é o espírito de caridade que não discute sobre a fé a fim de não alterar a confiança dos pequenos e de não perturbar a paz da comunhão universal? Ora, o que é a Igreja universal senão a comunhão em espírito de caridade? É pelo espírito de caridade que a Igreja é infalível. O espírito de caridade é a virtude divina do sacerdócio.
Dever dos homens, garantia de seus direitos, prova de sua imortalidade, eternidade de felicidade iniciada para eles na terra, objetivo glorioso dado a sua existência, fim e meio de seus esforços, perfeição de sua moral individual, civil e religiosa, o espírito de caridade abrange tudo, aplica-se a tudo, tudo pode esperar, tudo empreender e tudo cumprir.
Era pelo espírito de caridade que Jesus, expirando na cruz, dava a sua mãe um filho na pessoa de São João e, triunfando sobre as angústias do mais horrível suplício, soltava um grito de libertação e de salvação ao dizer: "Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito."
Foi pelo espírito de caridade que doze artesãos da Galiléia conquistaram o mundo; amaram a verdade mais do que suas vidas; e foram sozinhos dizê-la aos povos e aos reis; provados pela tortura, foram considerados fiéis. Mostraram às multidões a imortalidade viva em sua morte e regaram a terra com um sangue cujo calor não podia extinguir-se, pois neles ardia a chama da caridade.
Foi pela caridade que os apóstolos constituíram seus símbolos. Disseram que acreditar juntos é melhor do que duvidar separadamente; constituíram a hierarquia sobre a obediência, tornada tão nobre e tão grande pelo espírito de caridade, que servir assim é reinar; formularam a fé de todos e a esperança de todos e puseram esse símbolo sob a guarda da caridade de todos. Ai do egoísta que se apropria de uma só palavra dessa herança do Verbo, pois é um deicida que quer desmembrar o corpo do Senhor.
O símbolo é a arca sagrada da caridade, quem quer que o toque é atingido pela morte eterna, pois a caridade retira-se dele. É a herança sagrada de nossos filhos, é o preço do sangue de nossos pais.
Era pela caridade que os mártires se consolavam nas prisões dos césares e atraíam para sua crença seus guardas e mesmo seus carrascos.
Era em nome da caridade que São Martinho de Tours protestava contra o suplício dos priscilianos e separava-se da comunhão do tirano que queria impor a fé pela espada.
Foi pela caridade que tantos santos consolaram o mundo dos crimes cometidos em nome da própria religião e dos escândalos do santuário profanado.
Foi pela caridade que São Vicente de Paulo e Fenelon impuseram-se à admiração dos séculos, mesmo aos mais ímpios, e fizeram calar de antemão o riso dos filhos de Voltaire diante da seriedade imponente de suas virtudes.
Foi pela caridade, enfim, que a loucura da cruz tornou-se a sabedoria das nações, porque todos os nobres corações compreenderam que é mais elevado acreditar ao lado dos que amam e devotam-se do que duvidar ao lado dos egoístas e dos escravos do prazer!

ARTIGO I
Solução do primeiro problema

O VERDADEIRO DEUS

Deus só pode ser definido pela fé; a ciência não pode negar nem afirmar que ele existe.
Deus é o objeto absoluto da fé humana. No infinito, é a inteligência suprema e criadora da ordem. No mundo, é o espírito de caridade.
Será o Ser universal uma máquina fatal que tritura eternamente as inteligências ocasionais ou uma inteligência providencial que dirige as forças para a melhoria dos espíritos?
A primeira hipótese repugna à razão, é desesperadora e imoral.
Ciência e razão devem, portanto, inclinar-se diante da segunda.
Sim, Proudhon, Deus é uma hipótese, mas é uma hipótese tão necessária que, sem ela, todos os teoremas tornam-se absurdos ou duvidosos.
Para os iniciados da cabala, Deus é a unidade absoluta que cria e anima os números.
A unidade da inteligência humana demonstra a unidade de Deus.
A chave dos números é a dos símbolos, porque os sintomas são as figuras analógicas da harmonia que vem dos números.
As matemáticas não saberiam demonstrar a fatalidade cega, uma vez que são a expressão da exatidão que é o caráter da mais suprema razão.
A unidade demonstra a analogia dos contrários; é o princípio, o equilíbrio e o fim dos números. O ato de fé parte da unidade e retorna à unidade.

Vamos esboçar uma explicação da Bíblia pelos números, porque a Bíblia é o livro das imagens de Deus.
Perguntaremos aos números a razão dos dogmas da religião eterna, e os números responderão sempre, reunindo-se na síntese da unidade.

As poucas páginas que se seguem são simples apanhados das hipóteses cabalísticas; são externas à fé e as indicamos somente como pesquisas curiosas. Não nos cabe inovar em matéria de dogma, e nossas asserções como iniciado estão inteiramente subordinadas à nossa submissão como cristão.


Esboço da teologia profética dos números

I. A UNIDADE

A unidade é o princípio e a síntese dos números, é a idéia de Deus e do homem, é a aliança da razão e da fé.
A fé não pode ser oposta à razão, é exigida pelo amor, é idêntica à esperança. Amar é acreditar e esperar, e esse triplo ímpeto da alma é chamado virtude, porque é preciso coragem para realizá-lo. Mas haveria coragem nisso se a dúvida não fosse possível? Ora, poder duvidar é duvidar. A dúvida é a força equilibrante da fé e tem todo o seu mérito.
A própria natureza nos induz a crer, mas as fórmulas de fé são constatações sociais das tendências da fé numa época dada. É o que dá a infalibilidade à Igreja, infalibilidade de evidência e de fato.
Deus é necessariamente o mais desconhecido de todos os seres, uma vez que só é definido em sentido inverso de nossas experiências, é tudo o que não somos, é o infinito oposto ao finito por hipótese contraditória.
A fé e, por conseguinte, a esperança e o amor são tão livres que o homem, longe de impô-los aos outros, não os impõe a si mesmo.
São graças, diz a religião. Ora, será concebível que se exija a graça, isto é, que se queira forçar os homens ao que vem livre e gratuitamente do céu? É preciso desejar-lhes isso.
Raciocinar sobre a fé é disparatar, uma vez que o objeto da fé é externo à razão. Se me perguntam: "Existe um Deus?", eu respondo: "Acredito que sim." "Mas o senhor tem certeza disso?" "Se tivesse certeza, não acreditaria nele, eu o saberia."
Formular a fé é admitir termos da hipótese comum.
A fé começa onde a ciência acaba. Ampliar a ciência é aparentemente suprimir a fé, e, na realidade, é ampliar igualmente seu domínio, pois é ampliar sua base.
Só se pode adivinhar o desconhecido por suas proporções supostas ou passíveis de serem supostas do conhecido.
A analogia era o dogma único dos antigos magos. Dogma verdadeiramente mediador, pois é metade científico, metade hipotético, metade razão e metade poesia. Esse dogma foi e será sempre o gerador de todos os outros.
O que é o Homem-Deus? É o que realiza na vida mais humana o ideal mais divino.
A fé é uma adivinhação da inteligência e do amor dirigidos pelos índices da natureza e da razão.
Faz parte, portanto, da essência das coisas de fé serem inacessíveis à ciência, duvidosas para a filosofia e indefinidas para a certeza.
A fé é uma realização hipotética dos fins últimos da esperança. É a adesão ao signo visível das coisas que não se vê.

Sperandarum substantia rerum
Argumentum non apparentium

Para afirmar sem disparate que Deus existe ou não, é preciso partir de uma definição sensata ou insensata de Deus. Ora, essa definição para ser sensata deve ser hipotética, analógica e negativa do finito conhecido. Pode-se negar um Deus qualquer, mas o Deus absoluto não se nega tanto quanto não se prova; é sensatamente suposto e nele se acredita.
Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão a Deus, disse o Mestre; ver com o coração é acreditar e, se essa fé se relaciona ao verdadeiro bem, não pode ser enganada contanto que não procure definir muito seguindo as induções arriscadas da ignorância pessoal. Nossos julgamentos, em matéria de fé, aplicam-se a nós mesmos, será para nós como tivermos acreditado. Isto é, nós próprios nos fazemos à semelhança de nosso ideal.
Quem faz os deuses torna-se semelhante a eles, assim como todos aqueles que lhes dão sua confiança.
O ideal divino do velho mundo fez a civilização que acabou, e não se deve desesperar ao ver o deus de nossos bárbaros pais tornar-se o diabo de nossos filhos mais esclarecidos. Fazem-se diabos com deuses de refugo, e Satã só é assim tão incoerente e tão disforme porque é feito com todos os retalhos das antigas teogonias. É a esfinge sem palavra, é o enigma sem solução, é o mistério sem verdade, é o absoluto sem realidade e sem luz.
O homem é o filho de Deus, porque Deus, manifestado, é chamado o filho do homem.
Foi depois de ter feito Deus em sua inteligência e seu amor que a humanidade compreendeu o verbo sublime que disse: Faça-se a luz!
O homem é a forma do pensamento divino, e Deus é a síntese idealizada do pensamento humano.
Assim, o Verbo de Deus é o que revela o homem, e o Verbo do homem é o que revela Deus.
O homem é o Deus do mundo, e Deus é o homem do céu.
Antes de dizer: Deus quer, o homem quis.
Para compreender e honrar Deus todo-poderoso, é preciso que o homem seja livre.
Obedecendo e abstendo-se por temor ao fruto da ciência, tendo sido inocente e estúpido como o cordeiro, curioso e rebelde como o anjo de luz, o homem cortou o cordão de sua ingenuidade e, caindo livre sobre a terra, arrastou Deus em sua queda.
E é por isso que, do fundo dessa queda sublime, revela-se glorioso com o grande condenado do calvário e entra com ele no reino do céu.
Pois o reino do céu pertence à inteligência e ao amor, ambos filhos da liberdade!
Deus mostrou ao homem a liberdade como uma amante, e, para pôr seu coração à prova, fez passar, entre ela e ele, o fantasma da morte.
O homem amou e sentiu-se Deus; deu por ela isto que Deus acabava de nos dar: a esperança eterna.
Lançou-se em direção de sua noiva através da sombra da morte e o espectro desapareceu.
O homem possuía a liberdade; tinha abraçado a vida.
Expia agora tua glória, ó Prometeu!
Teu coração devorado sem cessar não pode morrer; é o teu abutre e Júpiter que morrerão.
Um dia despertaremos enfim dos sonhos penosos de uma vida atormentada, a obra de nossa provação terá acabado, seremos fortes o bastante contra a dor para sermos imortais.
Então viveremos em Deus, numa vida mais abundante, e desceremos às suas obras com a luz de seu pensamento, seremos levados ao infinito pelo sopro de seu amor.
Seremos, sem dúvida, os primogênitos de uma nova raça; anjos do porvir.
Mensageiros celestes, vogaremos na imensidão e as estrelas serão nossas brancas naus.
Transformar-nos-emos em doces visões para acalmar os olhos dos que choram; colheremos lírios resplandecentes em prados desconhecidos e espargiremos seu orvalho sobre a terra.
Tocaremos a pálpebra da criança que dorme e alegraremos docemente o coração de sua mãe com o espetáculo da beleza de seu filho bem-amado.


II. O BINÁRIO

O binário é mais particularmente o número da mulher, esposa do homem e mãe da sociedade.
O homem é o amor na inteligência, a mulher é a inteligência no amor.
A mulher é o sorriso do criador contente de si próprio, e foi depois de tê-la feito que ele descansou, diz a parábola celeste.
A mulher está antes do homem, porque é mãe e tudo lhe é perdoado de antemão porque dá à luz com dor.
A mulher foi quem primeiro se iniciou na imortalidade pela morte; o homem, então, a viu tão bela e a compreendeu tão generosa, que não quis sobreviver a ela, e amou-a mais do que sua vida, mais do que sua felicidade eterna.
Feliz proscrito! já que lhe foi dada como companheira de seu exílio.
Mas os filhos de Caim revoltaram-se contra a mãe de Abel e escravizaram sua mãe.
A beleza da mulher tornou-se uma presa para a brutalidade dos homens sem amor.
Então, a mulher fechou seu coração como um santuário desconhecido e disse aos homens indignos dela: "Sou virgem, mas quero ser mãe, e meu filho ensinar-vos-á a me amar."
Ó Eva! sê saudada e adorada em tua queda!
Ó Maria! sê abençoada e adorada em tuas dores e em tua glória!
Santa crucificada que sobrevivia a teu Deus para enterrar teu filho, sê para nós a última palavra da revelação divina!
Moisés chamava Deus de Senhor, Jesus chamava-o de meu Pai, e nós, pensando em ti, diremos à Providência: "Sois nossa mãe!"
Filhos da mulher, perdoemos a mulher decaída.
Filhos da mulher, adoremos a mulher regenerada.
Filhos da mulher, que dormimos em seu seio, que fomos embalados em seus braços e consolados por seus carinhos, amemo-la e amemo-nos entre nós!


III. O TERNÁRIO

O ternário é o número da criação.
Deus criou a si próprio eternamente e o infinito que ele preenche com suas obras é uma criação incessante e infinita.
O amor supremo contempla-se na beleza como em um espelho, e experimenta todas as formas como enfeites, pois é o noivo da vida.
O homem também afirma e cria a si próprio: enfeita-se com suas conquistas, ilumina-se com suas concepções, reveste-se com suas obras como que com vestes nupciais.
A grande semana da criação foi imitada pelo gênio humano divinizando as formas da natureza.
Cada dia forneceu uma revelação nova, cada rei progressivo do mundo foi por um dia a imagem e a encarnação de Deus! Sonho sublime que explica os mistérios da Índia e justifica todos os simbolismos!
A elevada concepção do homem-Deus corresponde à criação de Adão, e o cristianismo, à semelhança dos primeiros dias do homem típico no paraíso terrestre, foi apenas uma aspiração e uma viuvez.
Esperamos o culto da esposa e da mãe, aspiramos às núpcias da nova aliança.
Então os pobres, os cegos, todos os proscritos do velho mundo serão convidados para o festim e receberão um traje nupcial; e olhar-se-ão uns aos outros com uma grande doçura e um inefável sorriso, porque terão chorado muito tempo.


IV. O QUATERNÁRIO

O quaternário é o número da força. É o ternário completado por seu produto, é a unidade rebelada reconciliada à trindade soberana.
No ardor primeiro da vida, o homem, tendo esquecido sua mãe, compreendeu Deus apenas como um pai inflexível e cioso.
O sombrio Saturno, armado com sua foice parricida, põe-se a devorar seus filhos.
Júpiter teve cenhos que abalaram o Olimpo, e Jeová, trovões que ensurdeceram as solidões do Sinai.
E, no entanto, o pai dos homens, embriagado às vezes como Noé, deixava o mundo perceber os mistérios da vida.
Psiquê, divinizada por suas aflições, tornava-se esposa do Amor; Adônis ressuscitado reencontrava Vênus no Olimpo; Jó, vitorioso ao mal, recuperava mais do que tinha perdido.
A lei é uma prova de coragem. Amar a vida mais do que se teme as ameaças da morte é merecer a vida.
Os eleitos são os que ousam; ai dos tímidos!
Assim, os escravos da lei que se fazem os tiranos das consciências, e os servidores do temor, e os avaros de esperança, e os fariseus de todas as sinagogas e de todas as igrejas, estes são os réprobos e os malditos do Pai!
Cristo não foi excomungado e crucificado pela sinagoga?
Savonarola não foi queimado por ordem de um pontífice da religião cristã?
Os fariseus não são hoje o que eram no tempo de Caifás?
Se alguém lhes fala em nome da inteligência e do amor, escutá-lo-ão?
Foi arrancando os filhos da liberdade à tirania dos Faraós que Moisés inaugurou o reino do Pai.
Foi quebrando o jugo insuportável do farisaísmo mosaico que Jesus convidou todos os homens à fraternidade do filho único de Deus.
Quando caírem os últimos ídolos, quando se quebrarem as últimas correntes materiais das consciências, quando os últimos matadores de profetas, quando os últimos sufocadores do Verbo forem confundidos, será o reino do Espírito Santo.
Glória, pois, ao Pai, que enterrou o exército do Faraó no mar Vermelho!
Glória ao Filho que rasgou o véu do templo e cuja cruz extremamente pesada posta sobre a coroa dos Césares quebrou contra a terra a fronte dos Césares!
Glória ao Espírito Santo que deve varrer da terra com seu sopro terrível todos os ladrões e todos os carrascos para dar lugar ao banquete dos filhos de Deus!
Glória ao Espírito Santo que prometeu ao anjo da liberdade a conquista da terra e do céu.
O anjo da liberdade nasceu antes da aurora do primeiro dia, antes mesmo do despertar da inteligência, e Deus o denominou estrela da manhã.
Ó Lúcifer, tu te desligaste voluntária e desdenhosamente do céu onde o sol te inundava com sua claridade, para sulcar com teus próprios raios os campos agrestes da noite.
Brilhas quando o sol se põe e teu olhar resplandecente precede o nascer do dia.
Cais para de novo levantar; experimentas a morte para melhor conhecer a vida.
És, para as glórias antigas do mundo, a estrela da noite; para a verdade renascente, a bela estrela da manhã!
A liberdade não é a licença: a licença é a tirania.
A liberdade é a guardiã do dever, porque ela reivindica o direito.
Lúcifer, cujas idades das trevas fizeram o gênio do mal, será verdadeiramente o anjo da luz quando, tendo conquistado a liberdade ao preço da reprovação, fizer uso dela para se submeter à ordem eterna, inaugurando assim as glórias da obediência voluntária.
O direito é apenas a raiz do dever, é preciso possuir para dar.
Ora, eis como uma elevada poesia explica a queda dos anjos.
Deus tinha dado aos espíritos a luz e a vida, depois lhes disse: Amai.
- O que é amar?, responderam os espíritos.
- Amar é dar-se aos outros, respondeu Deus. - Os que amarem sofrerão, mas serão amados.
- Temos o direito de não dar nada, e nada queremos sofrer, disseram os espíritos inimigos do amor.
- Estais em vosso direito, respondeu Deus -, e separemo-nos. Eu e os meus queremos sofrer e morrer, mesmo para amar. É nosso dever!
O anjo caído é pois aquele que desde o princípio recusou amar; não ama, e é todo o seu suplício; não dá, e é toda a sua miséria; não sofre, e é seu nada; não morre, e é seu exílio.
O anjo caído não é Lúcifer, o porta-luz, é Satã, o caluniador do amor.
Ser rico é dar; não dar nada é ser pobre; viver é amar, não amar nada é estar morto; ser feliz é devotar-se; existir somente para si é reprovar a si próprio, é seqüestrar-se no inferno.
O céu é a harmonia dos sentimentos gerais; o inferno é o conflito dos instintos lassos.
O homem do direito é Caim, que matou Abel por inveja; o homem do dever é Abel, que morre para Caim por amor.
E tal foi a missão do Cristo, o grande Abel da humanidade.
Não é pelo direito que devemos ousar em tudo, é pelo dever.
O dever é a expansão e a fruição da liberdade; o direito isolado é o pai da servidão.
O dever é a obrigação, o direito é o egoísmo.
O dever é o sacrifício, o direito é a rapina e o roubo.
O dever é o amor, o direito é o ódio.
O dever é a vida infinita, o direito é a morte eterna.
Se é preciso combater pela conquista do direito, é somente para adquirir a potência do dever: e por que seríamos livres se não fosse para amar, devotarmo-nos e, assim, assemelharmo-nos a Deus?
Se é preciso infringir a lei, é quando ela submete o amor ao medo.
Aquele que quiser salvar sua alma perdê-la-á, diz o livro santo, e aquele que consentir em perdê-la salvá-la-á.
O dever é amar: pereça todo aquele que cria obstáculos ao amor! Silêncio aos oráculos do ódio! Aniquilamento aos falsos deuses do egoísmo e do medo! Vergonha aos escravos avaros de amor!
Deus ama os filhos pródigos!

V. O QUINÁRIO

O quinário é o número religioso, pois é o número de Deus reunido ao da mulher.
A fé não é a credulidade estúpida da ignorância maravilhada.
A fé é a consciência e a confiança do amor.
A fé é o grito da razão que persiste em negar o absurdo, mesmo diante do desconhecido.
A fé é um sentimento necessário à alma como a respiração à vida: é a dignidade do coração, é a realidade do entusiasmo.
A fé não consiste na afirmação deste ou daquele símbolo, mas na aspiração verdadeira e constante às verdades veladas por todos os simbolismos.
Um homem rejeita uma idéia indigna da divindade, quebra suas falsas imagens, revolta-se contra odiosas idolatrias, e dizeis que é um ateu?
Os perseguidores da Roma decaída também chamavam os primeiros cristãos de ateus, porque não adoravam os ídolos de Calígula ou de Nero.
Negar toda uma religião e mesmo todas as religiões de preferência a aderir a fórmulas que a consciência reprova é um corajoso e sublime ato de fé.
Todo homem que sofre por suas convicções é um mártir da fé.
Talvez se explique mal, mas prefere a justiça e a verdade a qualquer coisa; não o condeneis sem entendê-lo.
Acreditar na verdade suprema não é defini-la, e declarar que nela se crê é reconhecer ignorá-la.
O apóstolo São Paulo limita toda fé a estas duas coisas: acreditar que Deus existe e que ele recompensa aqueles que o procuram.
A fé é maior que as religiões, porque precisa menos dos artigos da crença.
Um dogma qualquer constitui apenas uma crença e pertence a uma comunhão especial; a fé é um sentimento comum a toda a humanidade.
Quanto mais se discute para precisar, menos se acredita; um dogma a mais é uma crença de que uma seita se apropria e eleva assim, de alguma maneira, à fé universal.
Deixemos os sectários fazerem e refazerem seus dogmas, deixemos os supersticiosos detalharem e formularem suas superstições, deixemos os mortos enterrarem seus mortos, como dizia o Mestre, e acreditemos na verdade indizível, no absoluto que a razão admite sem compreender, no que pressentimos sem saber.
Acreditemos na razão suprema.
Acreditemos no amor infinito e tenhamos piedade das estupidezes da escola e das barbáries da falsa religião.
Ó homem! dize-me o que esperas, e eu dir-te-ei o que vales.
Rezas, jejuas, velas e crês que escaparás assim sozinho, ou quase sozinho, à perda imensa dos homens devorados por um Deus cioso. És um hipócrita e um ímpio.
Fazes da vida uma orgia e esperas o nada como sono, és um doente ou um insano.
Estás pronto a sofrer como os outros e pelos outros e esperas a salvação de todos, és um sábio e um justo.
Esperar não é ter medo.
Ter medo de Deus! Que blasfêmia!
O ato de esperança é a oração.
A oração é o derramar-se da alma na sabedoria e no amor eternos.
É o olhar do espírito para a verdade e o suspiro do coração para a beleza suprema.
É o sorriso da criança para a mãe.
É o murmúrio do bem-amado que se debruça para os beijos de sua bem-amada.
É a doce felicidade da alma amante que se dilata num oceano de amor.
É a tristeza da esposa na ausência do novel esposo.
É o suspiro do viajante que pensa em sua pátria.
É o pensamento do pobre que trabalha para alimentar a mulher e os filhos.
Oremos em silêncio e ergamos em direção de nosso Pai desconhecido um olhar de confiança e de amor; aceitemos com fé e resignação a parte que nos cabe nas penas da vida, e todas as batidas de nossos corações serão palavras de oração.
Necessitamos acaso informar a Deus que coisas lhe pedimos, já não sabe ele o que nos é necessário?
Se choramos, apresentemos-lhe as nossas lágrimas; se nos regozijamos, dirijamos-lhe o nosso sorriso; se ele nos atinge, baixemos a cabeça; se nos acaricia, adormeçamos em seus braços!
Nossa oração será perfeita, quando orarmos sem sequer saber que oramos.
A oração não é um ruído que fere os ouvidos, é um silêncio que penetra no coração.
E doces lágrimas vêm umedecer os olhos, e suspiros escapam como a fumaça dos incensos.
Fica-se tomado por um inefável amor a tudo o que é beleza, verdade, justiça; palpita-se de uma nova vida e não se teme mais morrer. Pois a oração é a vida eterna da inteligência e do amor; é a vida de Deus na terra.
Amai-vos uns aos outros, eis a lei e os profetas! Meditai e compreendei essa palavra.
E, quando tiverdes compreendido, não leiais mais, não procures mais, não duvideis mais, amai!
Não mais sejais sábios, não mais sejais eruditos, amai! Essa é a doutrina da verdadeira religião; religião quer dizer caridade, e o próprio Deus não é senão amor.
Eu já vos disse: amar é dar.
O ímpio é aquele que absorve os outros.
O homem pio é aquele que se expande na humanidade.
Se o coração do homem concentra em si próprio o fogo com o qual Deus o anima, é um inferno que devora tudo e que só se preenche de cinzas; se ele o faz resplandecer fora, torna-se um doce sol de amor.
O homem doa-se à família; a família doa-se à pátria; a pátria, à humanidade.
O egoísmo do homem merece o isolamento e o desespero, o egoísmo da família merece a ruína e o exílio, o egoísmo da pátria merece a guerra e a invasão.
O homem que se isola de todo amor humano ao dizer: Eu servirei a Deus, este se engana. Pois, diz o apóstolo São João, se ele não ama ao próximo que vê, como amará a Deus que não vê?
É preciso dar a Deus o que é de Deus, mas não se deve recusar mesmo a César o que é de César.
Deus é quem dá a vida, César é quem pode dar a morte.
É preciso amar a Deus e não temer a César, pois está dito no livro sagrado: Quem com ferro fere com ferro perecerá.
Quereis ser bons, sede justos; quereis ser justos, sede livres!
Os vícios que deixam o homem semelhante à besta são os primeiros inimigos da sua liberdade.
Olhai o bêbado e dizei-me se essa besta imunda pode ser livre!
O avaro maldiz a vida de seu pai e, como o corvo, tem fome de cadáveres.
O ambicioso quer ruínas, é um invejoso em delírio; o devasso escarrou no seio da mãe e encheu de abortos as entranhas da morte.
Todos esses corações sem amor são punidos pelo mais cruel dos suplícios: o ódio.
Pois, saibamo-lo bem, a expiação está contida no pecado.
O homem que faz o mal é como um vaso de barro defeituoso, quebrar-se-á, a fatalidade o quer.
Com os escombros do mundo, Deus refaz estrelas; com os escombros da alma, refaz anjos.


VI. O SENÁRIO

O senário é o número da iniciação pela prova; é o número do equilíbrio, é o hieróglifo da ciência do bem e do mal.
Quem procura a origem do mal procura o que não é.
O mal é o apelativo da desordem do bem, é a tentativa infrutífera de uma vontade inábil.
Cada um possui o fruto de suas obras, e a pobreza é somente o aguilhão do trabalho.
Para o rebanho dos homens, o sofrimento é como o cão pastor que morde a lã das ovelhas para recolocá-las no caminho.
É por causa da sombra que podemos ver a luz; é por causa do frio que sentimos o calor; é por causa da dor que somos sensíveis ao prazer.
O mal é, portanto, para nós, a ocasião e o começo do bem.
Mas, nos sonhos de nossa inteligência imperfeita, acusamos o trabalho providencial, por não o compreender.
Assemelhamo-nos ao ignorante que julga o quadro no começo do esboço e diz, quando a cabeça está feita: "Então esta figura não tem corpo."
A natureza continua calma e realiza sua obra.
A relha não é cruel quando rasga o seio da terra, e as grandes revoluções do mundo são a lavoura de Deus.
Tudo tem seu tempo: aos povos ferozes, senhores bárbaros; ao gado, açougueiros; aos homens, juizes e pais.
Se o tempo pudesse transformar os carneiros em leões, eles comeriam os açougueiros e os pastores.
Os carneiros nunca se transformam porque não se instruem, mas os povos instruem-se.
Pastores e açougueiros dos povos, tendes razão, portanto, em ver como inimigos aqueles que falam a vosso rebanho.
Rebanhos que conheceis ainda apenas vossos pastores e que quereis ignorar seu comércio com os açougueiros, sois desculpáveis por apedrejar aqueles que vos humilham e que vos inquietam ao falarem de vossos direitos.
Ó Cristo! Os grandes condenam-te, teus discípulos renegam-te, o povo amaldiçoa-te e aclama teu suplício, somente tua mãe chora, Deus abandona-te!

Eli! Eli! Lamma Sabachtani!

VII. O SETENÁRIO

O setenário é o grande número bíblico. É a chave da criação de Moisés e o símbolo de toda a religião. Moisés deixou cinco livros, e a lei resume-se em dois testamentos.
A Bíblia não é uma história, é uma coletânea de poemas, é um livro de alegorias e imagens.
Adão e Eva são somente tipos primitivos da humanidade; a serpente que tenta é o tempo que põe à prova; a árvore da ciência é o direito; a expiação pelo trabalho é o dever.
Caim e Abel representam a carne e o espírito, a força e a inteligência, a violência e a harmonia.
Os gigantes são os antigos usurpadores da terra; o dilúvio foi um imensa revolução.
A arca é a tradição conservada numa família: a religião, nessa época, torna-se um mistério e a propriedade de uma raça. Caim é maldito por ser seu revelador.
Nemrod e Babel são duas alegorias primitivas do désposta único e do império universal sempre sonhado desde então; empreendido sucessivamente pelos assírios, os medas, os persas, Alexandre, Roma, Napoleão, os sucessores de Pedro, o Grande, e sempre inacabado por causa da dispersão de interesses, figurada pela confusão das línguas.
O império universal não deveria realizar-se pela força, mas pela inteligência e pelo amor. Por isso, a Nemrod, homem do direito selvagem, a Bíblia opõe Abraão, homem do dever, que se exila para buscar a liberdade e a luta numa terra estrangeira de que se apodera pelo pensamento.
Tem uma mulher estéril, é seu pensamento, e uma escrava fecunda, é sua força; mas, quando a força produz seu fruto, o pensamento torna-se fecundo, e o filho da inteligência exila o filho da força. O homem de inteligência é submetido a duras provas; deve confirmar suas conquistas pelo sacrifício. Deus quer que ele imole seu filho, isto é, a dúvida deve pôr à prova o dogma e o homem intelectual deve estar pronto a tudo sacrificar diante da razão suprema. Deus, então, intervém: a razão universal cede aos esforços do trabalho, mostra-se à ciência e apenas o lado material do dogma é imolado. É o que representa o carneiro preso pelos chifres entre os arbustos. A história de Abraão é pois um símbolo à moda antiga e contém uma elevada revelação dos destinos da alma humana. Tomada ao pé da letra, é um relato absurdo e revoltante. Santo Agostinho não tomava ao pé da letra o Asno de Ouro de Apuleu! Pobres grandes homens!
A história de Isaac é uma outra lenda. Rebeca é o tipo de mulher oriental, laboriosa, hospitaleira, parcial em suas afeições, astuta e ardilosa em suas manobras. Jacó e Esaú são ainda os dois tipos reproduzidos de Caim e Abel; mas aqui Abel se vinga; a inteligência emancipada triunfa pela astúcia. Todo o gênio israelita está no caráter de Jacó, o paciente laborioso suplantador que cede à cólera de Esaú, torna-se rico e compra o perdão de seu irmão. Quando os antigos queriam filosofar, contavam, nunca se deve esquecer.
A história ou lenda de José contém em germe todo o gênio do Evangelho, e Cristo, desconhecido por seu povo, teve de chorar mais de uma vez ao reler esta cena em que o governador do Egito lança-se ao pescoço de Benjamim dando um grito e dizendo: "Eu sou José!"
Israel torna-se o povo de Deus, isto é, o conservador da idéia e o depositário do Verbo. Essa idéia é a da independência humana e a da realeza pelo trabalho, mas é ocultada com cuidado, como um germe precioso. Um signo doloroso e indelével é imprimido nos iniciados, toda imagem da verdade é proibida, e os filhos de Israel velam, segurando o sabre em torno da unidade do tabernáculo. Hermor e Siquém querem introduzir-se pela força na família sagrada e perecem com seu povo em conseqüência de uma falsa iniciação. Para dominar os povos, é preciso que o santuário já esteja cercado de sacrifícios e terror.
A servidão dos filhos de Jacó prepara sua libertação: eles têm uma idéia, e não se acorrenta uma idéia; têm uma religião, e não se violenta uma religião; são por fim um povo, e não se acorrenta um verdadeiro povo. A perseguição suscita vingadores, a idéia encarna-se num homem, Moisés levanta, o Faraó cai e a coluna de nuvens e chamas que precede um povo livre avança majestosamente no deserto.
O Cristo é o pai e o rei pela inteligência e pelo amor.
Recebeu a unção santa, a unção do gênio, a unção da fé, a unção da virtude que é a força.
Ele vem quando o sacerdote está esgotado, quando os velhos símbolos não têm mais virtudes, quando a pátria da inteligência está extinta.
Vem para fazer Israel voltar à vida e, se não puder galvanizar Israel, morto pelos fariseus, ressuscitará o mundo abandonado ao culto morto dos ídolos.
Cristo é o direito do dever!
O homem tem o direito de cumprir o seu dever e não tem outro.
Homem, tens o direito de resistir até a morte a quem quer que te impeça de cumprir o teu dever!
Mãe! teu filho afoga-se; um homem impede-te de socorrê-lo; feres esse homem e corres a salvar teu filho!... Quem ousará condenar-te?...
Cristo veio para opor o direito do dever ao dever do direito.
O direito para os judeus era a doutrina dos fariseus. E, com efeito, pareciam ter adquirido o privilégio de dogmatizar; não eram eles os legítimos herdeiros da sinagoga?
Tinham o direito de condenar o Salvador, e o Salvador sabia que seu direito era o de resistir-lhes.
O Cristo é a protestação viva.
Mas protestação de quê? Da carne contra a inteligência? Não!
Do direito contra o dever? Não!
Da atração física contra a atração moral? Não! não!
Da imaginação contra a razão universal? Da loucura contra a sabedoria? Não, mil vezes não, ainda uma vez!
O Cristo é o dever real que protesta eternamente contra o direito imaginário.
É a emancipação do espírito que quebra a servidão da carne.
É a devoção revoltada contra o egoísmo.
É a modéstia sublime que responde ao orgulho: Eu não te obedecerei!
O Cristo é viúvo, o Cristo é só, o Cristo é triste: por quê? É que a mulher prostituiu-se.
É que a sociedade é acusada de roubo.
É que a felicidade egoísta é ímpia.
Cristo é julgado, condenado, executado, e nós o adoramos!
Isso se passou num mundo talvez tão sério quanto o nosso.
Juizes do mundo em que vivemos, sede atentos e pensai naquele que julgará vossos julgamentos.
Mas, antes de morrer, o Salvador legou a seus filhos o símbolo imortal da salvação: a comunhão.
Comunhão! União comum! Última palavra do Salvador do mundo.
O pão e o vinho repartidos entre todos, disse ele, é minha carne e meu sangue!
Ele deu sua carne aos carrascos, seu sangue à terra que quis bebê-lo: e por quê?
Para que todos repartam o pão da inteligência e o vinho do amor. Ó signo da união dos homens! Ó mesa comum! Ó banquete da fraternidade e da igualdade! quando enfim serás melhor compreendido?
Mártires da humanidade, vós que destes a vida para que todos tivessem o pão que alimenta e o vinho que fortifica, também não dizeis ao impor a mão sobre esses símbolos da comunhão universal: Isso é nossa carne e nosso sangue!
E vós, homens do mundo inteiro, vós a quem o Mestre chama irmãos: oh, não sentis que o pão universal é Deus!
Devedores do crucificado.
Vós todos que não estais prontos para dar à humanidade vosso sangue, vossa carne e vossa vida não sois dignos da comunhão do Filho de Deus! Não o façais derramar seu sangue sobre vós, pois faria nódoas sobre vossa fronte!
Não aproximeis vossos lábios do coração de Deus, ele sentiria vossa mordedura.
Não bebais o sangue do Cristo, queimaria vossas entranhas; já é suficiente que ele o tenha derramado inutilmente por vós!


VIII. O NÚMERO OITO

O octonário é o número da reação e da justiça equilibrante.
Toda ação produz uma reação.
É a lei universal do mundo.
O cristianismo devia produzir o anticristianismo.
O anticristo é a sombra, é o contraste e a prova do Cristo.
O anticristo já se produzia na Igreja na época dos apóstolos: Aquele que resiste agora resiste até a morte, dizia São Paulo, e o filho da iniqüidade manifestar-se-á.
Os protestantes disseram: O anticristo é o papa.
O papa respondeu: Todo herege é um anticristo.
O anticristo não é mais o papa do que Lutero: o anticristo é o espírito oposto ao do Cristo.
É a usurpação do direito pelo direito; é o orgulho da dominação e o despotismo do pensamento.
É o egoísmo pretensamente religioso dos protestantes da mesmíssima maneira que a ignorância crédula e imperiosa dos maus católicos.
O anticristo é o que divide os homens ao invés de os unir; é o espírito de disputa, é a teimosia dos doutores e dos sectários, o desejo ímpio de se apropriar da verdade e dela excluir os outros, o de forçar todo o mundo a sofrer a estreiteza de nossos julgamentos.
O anticristo é o pai que amaldiçoa ao invés de abençoar, que afasta ao invés de aproximar, que escandaliza ao invés de edificar, que condena ao invés de salvar.
É o fanatismo odioso que desencoraja a boa vontade.
É o culto da morte, da tristeza e da fealdade.
Que futuro daremos a nosso filho? disseram os pais insensatos; ele é fraco de espírito e de corpo e seu coração não dá ainda sinal de vida: faremos dele um padre, a fim de que viva do altar. E não compreenderam que o altar não é uma manjedoura para os animais preguiçosos.
Por isso, olhai os padres indignos, contemplei esses pretensos servidores do altar. O que é que dizem a vossos corações esses homens gordos ou cadavéricos, de olhos inexpressivos, de lábios cerrados ou escancarados?
Escutai-os falarem: o que vos ensina esse ruído desagradável e monótono?
Rezam como dormem e sacrificam como comem.
São máquinas de pão, de carne, de vinho e de palavras vazias de sentido.
E, quando se regozijam, como ostras ao sol, por estarem sem pensamento e sem amor, diz-se que têm paz de espírito.
Têm a paz da besta e, para o homem, a do túmulo é melhor; são os padres da tolice e da ignorância, são os ministros do anticristo.
O verdadeiro padre do Cristo é um homem que vive, que sofre, que ama e que combate pela justiça. Não briga, não reprova, difunde o perdão, a inteligência e o amor.
O verdadeiro cristão é estranho ao espírito de seita; ele é tudo para todos e vê todos os homens como filhos de um pai comum que quer salvar a todos; o símbolo inteiro tem para ele somente um sentido de doçura e amor: deixa para Deus os segredos da justiça e só compreende a caridade.
Vê os maus como doentes de quem é preciso ter pena e cuidar; o mundo com seus erros e seus vícios é, para ele, o hospital de Deus, e ele quer ser seu enfermeiro.
Não se acha melhor que ninguém, apenas diz: Enquanto eu for melhor, sirvamos os outros, quando for preciso cair e morrer, outros talvez tomarão meu lugar e nos servirão.


IX. O NÚMERO NOVE

Eis o eremita do tarô; eis o número dos iniciados e dos profetas.
Os profetas são solitários, pois seu destino é nunca serem ouvidos.
Vêem muito mais que os outros; pressentem as desgraças por vir. Assim, são aprisionados, mortos ou vilipendiados, são rejeitados como leprosos, ou deixam-nos morrer de fome.
Depois, quando os eventos ocorrem, dizemos: Foram essas pessoas que nos trouxeram desgraça.
Agora, como sempre, na véspera dos grandes desastres, nossas ruas estão plenas de profetas.
Encontrei alguns nas prisões; vi outros que morriam esquecidos em pardieiros.
Toda grande cidade viu algum cuja profecia silenciosa era girar incessantemente e andar sempre coberto de andrajos no palácio do luxo e da riqueza.
Vi um cujo rosto resplandecia como o do Cristo: tinha as mãos calejadas e a roupa do trabalhador e moldava epopéias como argila. Torcia juntos o gládio do direito e o cetro do dever e, sobre esta coluna de ouro e aço, inaugurava o símbolo criador do amor.
Um dia, numa grande assembléia do povo, desceu a rua, segurando um pão que partia e distribuía, dizendo: Pão de Deus, faze-te pão para todos!
Conheço outro que gritou: Não quero mais adorar o Deus do diabo; não quero um carrasco como Deus! E acreditou-se que ele blasfemava.
Não; mas a energia de sua fé transbordava em palavras inexatas e imprudentes.
Dizia ainda, na loucura de sua caridade ferida: Todos os homens são solidários e expiam uns pelos outros, da mesma forma que se merecem uns aos outros.
O castigo para o pecado é a morte.
O próprio pecado é, aliás, um castigo, e o maior dos castigos. Um grande crime é apenas uma grande desgraça.
O pior dos homens é o que se acredita melhor do que os outros.
Os homens apaixonados são escusáveis, uma vez que são passivos. Paixão significa sofrimento e redenção pela dor.
O que chamamos de liberdade é somente a onipotência da atração divina. Os mártires diziam: Mais vale obedecer a Deus que aos homens.
O menos perfeito ato de amor vale mais ao que a melhor palavra de piedade.
Não julgueis, falai pouco, amai e agi.
Um outro que veio disse: Protestai contra as más doutrinas por boas obras, mas não vos separeis de ninguém.
Restabelecei todos os altares, purificai todos os templos e estai prontos para a visita do espírito do amor.
Que cada um reze seguindo seu rito e comungue com os seus, mas não condeneis os outros.
Uma prática de religião nunca é desprezível, pois é o símbolo de um grande e santo pensamento.
Rezar em conjunto é comungar na mesma esperança, na mesma fé, na mesma caridade.
O signo não é nada para si próprio: é a fé que o santifica.
A religião é o laço mais sagrado e mais forte da associação humana, e fazer um ato de religião é fazer um ato de humanidade.
Quando os homens compreenderem, enfim, que não se deve discutir sobre coisas que se ignora;
Quando sentirem que um pouco de caridade vale mais que muita influência e dominação;
Quando todos respeitarem o que o próprio Deus respeita na menor de suas criaturas: a espontaneidade da obediência e a liberdade do dever;
Então, só haverá uma religião no mundo, a religião cristã e universal, a verdadeira religião católica que não renegará mais a si própria por restrição de lugares ou de pessoas.
Mulher, dizia o Salvador à samaritana, em verdade te digo que virá o tempo em que os homens não adorarão mais a Deus nem em Jerusalém nem sobre esta montanha, pois Deus é espírito, e seus verdadeiros adoradores devem servi-lo em espírito e em verdade.


X. NÚMERO ABSOLUTO DA CABALA
A chave das sefirotes (ver Dogma e Ritual da Alta Magia).....



XI. O NÚMERO ONZE

Onze é o número da força; é o da luta e do martírio.
Todo homem que morre por uma idéia é um mártir, pois nele as aspirações do espírito triunfaram sobre os temores dos animais.
Todo homem que morre na guerra é um mártir, pois morre pelos outros.
Todo homem que morre miserável é um mártir, pois é como um soldado vencido na batalha da vida.
Aqueles que morrem pelo direito são tão santos em seu sacrifício quanto as vítimas do dever e, nas grandes lutas da revolução contra o poder, os mártires caem dos dois lados.
Sendo o direito a raiz do dever, nosso dever é defender nossos direitos.
O que é um crime? É o exagero do direito. O assassínio e o roubo são negações da sociedade; é o despotismo isolado de um indivíduo que usurpa a realeza e faz guerra por sua conta e risco.
O crime deve ser sem dúvida reprimido, e a sociedade deve defender-se; mas quem poderia ser justo o suficiente, grande o suficiente e puro o suficiente para ter a pretensão de punir?
Paz a todos os que tombam na guerra, mesmo na guerra ilegítima, pois arriscaram a cabeça e perderam-na, e, tendo pago, o que podemos ainda reclamar?
Honra a todos os que combatem bravamente e lealmente! Vergonha somente aos traidores e aos covardes!
O Cristo morreu entre dois ladrões e levou consigo um deles ao céu.
O reino dos céus é dos lutadores e se ganha à força.
Deus dá sua onipotência ao amor. Gosta de triunfar sobre o ódio, mas vomita a tibieza.
O dever é viver, nem que seja por um instante!
É belo ter reinado por um dia, mesmo por uma hora! Mesmo que seja sob a espada de Dâmocles ou na fogueira de Sardanapalo.
Mas é mais belo ter visto a seus pés todas as coisas do mundo e ter dito: Serei o rei dos pobres e meu trono será sobre o calvário.
Existe um homem mais forte do que aquele que mata, é o que morre para salvar.
Não existem crimes isolados nem expiações solitárias.
Não existem virtudes pessoais nem devotamentos perdidos.
Quem não for irrepreensível é cúmplice de todo mal, e quem não for absolutamente perverso pode participar de todo bem.
É por isso que um suplício é sempre uma expiação humanitária, e toda cabeça que é recolhida de um cadafalso pode ser saudada e honrada como a cabeça de um mártir.
É por isso também que o mais nobre e o mais santo dos mártires podia, ao entrar em sua consciência, achar-se digno da pena que iria suportar e dizer, saudando o gládio pronto a feri-lo: Justiça seja feita!
Puras vítimas das catacumbas de Roma, judeus e protestantes massacrados por indignos cristãos.
Padres da Abbaye e dos Carmes, guilhotinados do terror, realistas degolados, revolucionários sacrificados, soldados de nossos grandes exércitos que semeasses as ossadas pelo mundo, vós todos que morresses com sofrimento, ousados de toda sorte, bravos filhos de Prometeu que não tendes medo nem do raio nem do abutre, honra a vossas cinzas, paz e veneração a vossas memórias! Sois os heróis do progresso, os mártires da humanidade!


XII. O NÚMERO DOZE

O doze é o número cíclico; é o do símbolo universal.
Eis uma tradução dos versos feitos para o símbolo mágico e católico sem restrição:
Creio num só Deus onipotente, nosso pai,
Eterno criador do céu e da terra.
Creio no Rei salvador, chefe da humanidade.
Da divindade, filho, palavra e esplendor.
Concepção viva do eterno amor,
Divindade visível e luz atuante.
Desejado pelo mundo sempre e em todos os lugares.
Mas que não é um Deus separável de Deus.
Descido entre nós para libertar a terra,
Santificou a mulher em sua mãe.
Era o homem celeste, sábio e doce homem.
Nasceu para sofrer e morrer como nós.
Proscrito pela ignorância, acusado pela inveja,
Morreu na cruz para nos dar a vida.
Todos os que o tomarem por guia e apoio
Podem, por sua doutrina, ser Deus como ele.
Ressuscitou para reinar sobre os tempos;
Deve, da ignorância, as nuvens dissipar.
Seus preceitos, um dia mais fortes e mais conhecidos,
Serão o julgamento dos vivos e dos mortos.
Creio no Espírito Santo cujos únicos intérpretes
São o espírito e o coração dos santos e dos profetas.
É um sopro de vida e fecundidade
Que provém da humanidade e do Pai.
Creio na família única e sempre santa
Dos justos que o céu reuniu em seu temor.
Creio na unidade do símbolo, do lugar,
Do pontífice e do culto na honra de um só Deus.
Creio que, em nos transformando, a morte nos renove,
E que em nós, como em Deus, a vida é eterna.


XIII. O NÚMERO TREZE

O treze é o número da morte e o do nascimento; é o da propriedade e da herança, da sociedade e da família, da guerra e dos tratados.
A sociedade tem por bases as trocas do direito, do dever e da fé mútua.
O direito é a propriedade; a troca, a necessidade; a boa fé, o dever.
Aquele que quer receber mais do que dá ou que quer receber sem dar é um ladrão.
A propriedade é o direito de dispor de uma parte da fortuna comum; não é nem o direito de destruição nem o direito de seqüestro.
Destruir ou seqüestrar o bem público não é possuir, é roubar.
Digo bem público, porque o verdadeiro proprietário de todas as coisas é Deus, que quer que tudo seja de todos. O que quer que façais, não levareis convosco ao morrer nenhum dos bens deste mundo. Ora, o que vos deve ser tomado um dia não vos pertence realmente. Foi apenas um empréstimo.
Quanto ao usufruto, é o resultado do trabalho; mas o próprio trabalho não é uma garantia segura de posse, e a guerra pode vir, pela devastação ou pelo incêndio, deslocar a propriedade.
Fazei, pois, um bom uso das coisas que perecem, vós que perecereis antes delas!
Levai em consideração que o egoísmo provoca o egoísmo e que a imoralidade do rico corresponderá a crimes dos pobres.
O que quer o pobre, se é honesto?
Quer trabalho. Usai vossos direitos, mais fazei vosso dever: o dever do rico é expandir a riqueza; o bem que não circula está morto, não entesoureis a morte.
Um sofista disse: A propriedade é o roubo. E queria sem dúvida falar da propriedade absorvida, subtraída à troca, desviada da utilidade COMUM.
Se esse era seu pensamento, ele poderia ir mais longe e dizer que tal supressão da vida pública é um verdadeiro assassínio.
É o crime do açambarcamento, que o instinto público sempre viu como um crime de lesa-majestade humana.
A família é uma associação natural que resulta do casamento.
O casamento é a união de dois seres que o amor uniu e que se prometem um devotamento mútuo no interesse dos filhos que podem nascer.
Dois esposos que têm um filho e se separam são ímpios. Será que querem executar o julgamento de Salomão e separar também o filho?
Prometer-se um amor eterno é puerilidade: o amor sexual é uma emoção sem dúvida divina, mas acidental, involuntária e transitória; mas a promessa do devotamente recíproco é a essência do casamento e o princípio da família.
A sanção e a garantia dessa promessa devem ser uma confiança absoluta.
Todo ciúme é uma suspeita, e toda suspeita é um ultraje.
O verdadeiro adultério é o da confiança: a mulher que se queixa de seu marido perto de outro homem; o homem que confia a outra mulher, que não a sua, as aflições ou as esperanças de seu coração, esses traem verdadeiramente a fé conjugal.
As surpresas dos sentidos só são infidelidades por causa dos arrebatamentos do coração que se abandona mais ou menos ao reconhecimento do prazer. Afora isso, são faltas humanas, de que é preciso envergonhar-se e que se deve esconder: são indecências que é preciso evitar afastando as ocasiões, mas que nunca se deve procurar surpreender; os bons costumes são a proscrição do escândalo.
Todo escândalo é uma torpeza. Não se é indecente porque tem-se órgãos que o pudor não nomeia; mas se é obsceno quando são mostrados.
Maridos, escondei as chagas de vossa vida a dois; não desnudeis vossas mulheres perante o escárnio público!
Mulheres, não exibais as misérias do leito conjugal: seria vos ínscreverdes na opinião pública como prostituídas.
É preciso uma elevada dignidade de coração para conservar a fé conjugal: é um pacto de heroismo que somente as grandes almas podem compreender em toda a extensão.
Os casamentos que são rompidos não são casamentos, são acasalamentos.
No que se pode transformar uma mulher que abandona o marido? Não é mais esposa, não é viúva; o que é então? É uma apóstata da honra, que é forçada a ser licenciosa, porque não é nem virgem nem livre.
Um marido que abandona a mulher a prostitui e merece o nome infame que é dado aos amantes das jovens perdidas.
O casamento é sagrado, indissolúvel, quando existe realmente.
Mas só pode existir para seres de elevada inteligência e nobre coração.
Os animais não se casam, e os homens que vivem como animais sofrem as fatalidades de sua natureza.
Fazem sem cessar tentativas para agir racionalmente. Suas promessas são tentativas e simulacros de promessas; seus casamentos, tentativas e simulacros de casamento; seus amores, tentativas e simulacros de amor. Quereriam sempre e não querem nunca; começam sempre e não terminam nunca. Para tais pessoas, as leis só se aplicam pela repressão.
Tais seres podem ter uma ninhada, mas nunca têm uma família: o casamento, a família são direitos do homem perfeito, do homem emancipado, do homem inteligente e livre.
Por isso, consultar os anais dos tribunais e lede a história dos parricidas.
Erguei o véu negro de todas estas cabeças cortadas e perguntai-lhes o que pensaram do casamento e da família, que leite sugaram, que carinhos as enobreceram... Depois tremei, vós todos que não dais a vossos filhos o pão da inteligência e do amor, vós todos que não sancionais a autoridade paterna pela virtude do bom exemplo...
Esses miseráveis eram órfãos pelo espírito e pelo coração e vingaram-se de seu nascimento!...
Vivemos num século em que mais do que nunca a família é desconhecida no que tem de augusta e sagrada: o interesse material mata a inteligência e o amor; as lições da experiência são desprezadas, regateia-se as coisas de Deus. A carne insulta o espírito, a fraude ri na cara da lealdade. Quanto mais ideal, mais justiça: a vida humana ficou órfã dos dois lados.
Coragem e paciência! Este século irá para onde devem ir todos os culpados. Vede como é triste! O tédio é o véu negro de sua cabeça... a carroça anda, e a multidão segue estremecendo...
Logo, mais um século será julgado pela história, e será escrito num túmulo de ruínas: Aqui jaz o século parricida! o século carrasco de Deus e de seu Cristo!
Na guerra tem-se o direito de matar para não morrer: mas na batalha da vida, o mais sublime dos direitos é o de morrer para não matar.
A inteligência e o amor devem resistir à opressão até a morte, nunca até o assassínio.
Homem de coração, a vida daquele que te ofendeu está em tuas mãos, pois ele é senhor da vida dos outros, o qual não faz questão da sua. Massacra-o com tua grandeza: perdoa-o!
- Mas será proibido matar o tigre que nos ameaça?
- Se for um tigre com rosto humano, é mais belo deixar-se devorar, no entanto, aqui, a moral nada prescreve.
- Mas e se o tigre ameaça meus filhos?
- A própria natureza vos responderá.
Harmódio e Aristogiston tinham festas e estátuas na Grécia antiga. A Bíblia consagrou os nomes de Judite e Aud e uma das mais sublimes figuras do livro santo, Sansão cego e acorrentado que sacode as colunas do templo e grita: Que eu morra com os filisteus!
Acreditai, entretanto, que, se Jesus, antes de morrer, tivesse ido a Roma apunhalar Tibério, teria salvado o mundo como fez ao perdoar seus carrascos e até mesmo ao morrer por Tibério?
Brutus, ao matar César, salvou a liberdade romana? Ao matar Calígula, Quéreas apenas deu lugar a Cláudio e a Nero. Protestar contra a violência com violência é justificá-la e forçá-la a se reproduzir.
Mas triunfar sobre o mal pelo bem, sobre o egoísmo pela abnegação, sobre a ferocidade pelo perdão: é o segredo do cristianismo e da vitória eterna.
Eu vi o lugar em que a terra sangrava ainda pelo assassínio de Abel e nesse lugar passava um regato de pranto.
E miríades de homens avançavam conduzidos pelos séculos, deixando cair lágrimas no regato.
E a eternidade, agachada e morna, contemplava as lágrimas que caíam, contava-as uma a uma, e nunca havia o suficiente para lavar uma mancha de sangue.
Mas, entre duas multidões e duas épocas, veio o Cristo, pálida e resplandecente figura.
E, na terra do sangue e das lágrimas, plantou a vinha da fraternidade, e as lágrimas e o sangue aspirados pelas raizes da árvore divina tornaram-se a seiva deliciosa da uva que deve embriagar de amor os filhos do futuro.


XIV. O NÚMERO CATORZE

Catorze é o número da fusão, da associação e da unidade universal, e é em nome do que representa que faremos aqui um apelo às nações, a começar pela mais antiga e mais santa.
Filhos de Israel, por que, em meio ao movimento das nações, continuais imóveis como se guardásseis os túmulos de vossos pais?
Vossos pais não estão mais aqui, ressuscitaram: pois o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó não é o Deus dos mortos!
Por que imprimis sempre a vossa geração a marca sangrenta do cutelo?
Deus não quer mais separar-vos dos outros homens; sede nossos irmãos, e comei conosco hóstias pacíficas nos altares que o sangue nunca conspurca.
A lei de Moisés está cumprida: lede vossos livros e compreendei que fostes um povo cego e duro, como dizem todos os vossos profetas.
Mas fostes também um povo corajoso e perseverante na luta.
Filhos de Israel, tornai-vos filhos de Deus: compreendei e amai!
Deus apagou de vossa fronte a marca de Caim, e os povos ao vos ver passar não dirão mais: Aí estão os judeus! gritarão: Abram alas para nossos irmãos, abram alas para os que nos precederam na fé.
E iremos todos os anos comemorar convosco a páscoa na nova Jerusalém.
E descansaremos debaixo de vossa videira e de vossa figueira; pois sereis ainda amigos do viajante, em memória de Abraão, de Tobias e dos anjos que os visitavam.
E em memória daquele que disse: Quem ao menor dentre vós recebe a mim me recebe.
Pois doravante não recusareis mais um asilo em vossa casa e em vosso coração a vosso irmão José que vendesses às nações.
Porque ele se tornou poderoso na terra do Egito onde procuráveis pão durante os dias de esterilidade.
E ele recordou-se de seu pai Jacó e de Benjamim, seu jovem irmão; e perdoa vossa inveja e vos abraça chorando.
Filhos dos crentes, cantaremos convosco: não existe outro Deus senão Deus e Maomé é seu profeta.
Dizei com os filhos de Israel: Nenhum Deus existe senão Deus e Moisés é seu profeta!
Dizei com os cristãos: Não existe outro Deus senão Deus e Jesus Cristo é seu profeta!
Maomé é a sombra de Moisés. Moisés é o precursor de Jesus.
O que é um profeta? É um representante da humanidade que procura Deus. Deus é Deus, o homem é o profeta de Deus quando faz que acreditemos em Deus.
A Bíblia, o Alcorão e o Evangelho são três traduções diferentes do mesmo livro. Há somente uma lei como há somente um Deus.
Ó mulher idealizada, ó recompensa dos eleitos, és mais bela do que Maria?
Ó Maria, filha do Oriente, casta como o puro amor, grande como as aspirações maternais, vem ensinar aos filhos do Islã os mistérios do céu e os segredos da beleza.
Convida-os para o festim da nova aliança, lá, em três tronos resplandecentes de pedrarias, três profetas estarão sentados.
A árvore tuba fará de seus galhos recurvados um dossel para a mesa celeste.
A esposa será branca como a lua e rubra como o sorriso da manhã.
Todos os povos acorrerão para vê-Ia e não temerão mais passar Al Sirah, pois, sobre essa ponte cortante como uma lâmina de barbear, o Salvador estenderá sua cruz e virá estender a mão aos que vacilarem, e aos que caírem a esposa estenderá seu véu perfumado e os trará em sua direção.
Povos, batei palmas e aplaudi o último triunfo do amor! Somente a morte ficará morta e somente o inferno será queimado.
Ó nações da Europa, a quem o Oriente estende as mãos, uni-vos para expulsar os ursos do Norte! Que a última guerra faça triunfar a inteligência e o amor, que o comércio entrelace os braços do mundo e que uma civilização nova, saída do Evangelho armado, reúna todos os rebanhos da terra sob o cajado do mesmo pastor!
Tais serão as conquistas do progresso; tal é o objetivo para o qual nos empurra todo o movimento do mundo.
O progresso é o movimento; e o movimento é a vida.
Negar o progresso é afirmar o nada e deificar a morte.
O progresso é a única resposta que a razão pode opor às objeções relativas à existência do mal.
Nada está bem, mas tudo estará bem um dia. Deus inicia e acabará sua obra.
Sem o progresso, o mal seria imutável como Deus!
O progresso explica as ruínas e consola Jeremias que chora.
As nações sucedem-se como os homens e nada é estável porque tudo caminha em direção da perfeição.
O grande homem que morre lega a sua pátria o fruto de seu trabalho; a grande nação que se extingue na terra transfigura-se numa estrela para iluminar as obscuridades da história.
O que ele escreveu por suas ações fica gravado no livro eterno; acrescentou uma página à bíblia do gênero humano.
Não digais que a civilização é má; pois assemelha-se ao calor úmido que amadurece as colheitas, desenvolve rapidamente os princípios da vida e os princípios da morte, mata e vivifica.
É como o anjo do julgamento que separa os maus dos bons.
A civilização transforma em anjos de luz os homens de boa vontade e coloca o egoísta abaixo da besta; é a corrupção dos corpos e a emancipação das almas.
O mundo ímpio dos gigantes elevou ao céu a alma de Henoch; acima das bacanais da Grécia primitiva eleva-se o espírito harmonioso de Orfeu.
Sócrates e Pitágoras, Platão e Aristóteles resumem, ao explicá-las, todas as aspirações do mundo antigo; as fábulas de Homero permanecem mais verdadeiras do que a história, e só nos restam das grandezas de Roma os escritos imortais que elaborou o século de Augusto.
Assim, Roma talvez só tenha abalado o mundo com suas guerreiras convulsões para gerar seu Virgílio.
O cristianismo é o fruto das meditações de todos os sábios do Oriente que revivem em Jesus Cristo.
Assim, a luz dos espíritos nasceu onde nasce o sol do mundo; o Cristo conquistou o Ocidente, e os doces raios do sol da Ásia tocaram os gelos do Norte.
Movidos por esse calor desconhecido, formigueiros de homens novos espalharam-se por um mundo exaurido; as almas dos povos mortos brilharam sobre os povos rejuvenescidos e aumentaram neles o espírito de vida.
Há no mundo uma nação que se chama franqueza e liberdade, pois essas duas palavras são sinônimos do nome França.
Essa nação sempre foi, de algum modo, mais católica do que o papa e mais protestante do que Lutero.
A França das cruzadas, a França dos trovadores e das canções, a França de Rabelais e de Voltaire, a França de Bossuet e de Pascal, ela é a síntese dos povos; ela consagra a aliança da razão e da fé, da revolução e do poder, da crença mais terna e da dignidade humana mais altiva.
Por isso, vede como ela caminha, como se agita, como luta, como cresce!
Freqüentemente enganada e ferida, nunca batida, entusiasta com seus triunfos, audaciosa em seus reveses, ela ri, canta, morre e ensina ao mundo a fé na sua imortalidade.
A velha guarda não se rende, mas também não morre. Confiai no entusiasmo de nossos filhos, que querem ser um dia, eles também, soldados da velha guarda!
Napoleão não é mais um homem, é o próprio gênio da França, é o segundo salvador do mundo, e também deu como símbolo a seus apóstolos a cruz!
Santa Helena e o Gólgota são os marcos da nova civilização, são os pilares de uma imensa arcada que o arco-íris do último dilúvio forma e que lança uma ponte entre dois mundos.
E pensaríeis que a espora de um tártaro quebrará um dia o pacto de nossas glórias, o testamento de nossa liberdade!
Dizei antes que voltaremos a ser crianças e retornaremos ao seio de nossas mães!
Caminha!, caminha!, diz a voz divina a Aasveros. Avança! avança! grita para a França o destino do mundo!... E para onde vamos? Para o desconhecido, para o abismo talvez; não importa! Mas para o passado, para os cemitérios do esquecimento, mas para os cueiros que nossa própria infância rasgou, mas para a imbecilidade e a ignorância das primeiras idades... nunca! nunca!


XV. O NÚMERO QUINZE

Quinze é o número do antagonismo e da catolicidade.
O cristianismo divide-se agora em duas Igrejas: a Igreja civilizadora e a Igreja bárbara, a Igreja progressista e a Igreja estacionária.
Uma é ativa, a outra é passiva; uma sempre condenou as nações e os governos, uma vez que os reis a temem; a outra submeteu-se a todos os despotismos e só pode ser um instrumento de servidão.
A Igreja ativa realiza Deus pelos homens e só ela crê na divindade do Verbo humano, intérprete do Verbo de Deus.
O que é, afinal de contas, a infalibilidade do papa, senão a autocracia da inteligência confirmada pelo sufrágio universal da fé?
A esse respeito, dir-se-á, o papa deveria ser o primeiro gênio de seu século. Por quê? É melhor, na realidade, que ele seja um espírito comum. Sua supremacia não é mais divina, porque é, de algum modo, mais humana.
Os acontecimentos não falam mais alto do que os rancores e as ignorâncias irreligiosas? Não vedes a França católica sustentar com uma mão o papado desfalecido e com a outra segurar a espada para combater na liderança do exército do progresso?
Católicos, israelitas, turcos, protestantes já combateram sob a mesma bandeira; o crescente uniu-se à cruz latina, e juntos lutamos contra a invasão dos bárbaros e contra sua embrutecida ortodoxia.
É para sempre um fato consumado. Ao admitir dogmas novos, a cátedra de São Pedro acaba de se pronunciar solenemente progressiva.
A pátria do cristianismo católico é a da ciência e das belas-artes, e o Verbo eterno do Evangelho vivo e encarnado numa autoridade visível é ainda a luz do mundo.
Silêncio pois aos fariseus da nova sinagoga! Silêncio às tradições odiosas da escola, ao presbiterianismo arrogante, ao jansenismo absurdo e a todas estas vergonhosas e supersticiosas interpretações do dogma eterno, tão justamente estigmatizadas pelo gênio impiedoso de Voltaire!
Voltaire e Napoleão morreram católicos. E será que sabeis o que deve ser o catolicismo do futuro?
Será o dogma evangélico posto à prova como ouro pela crítica dissolvente de Voltaire, e realizado no governo do mundo pelo gênio de um Napoleão cristão!
Os que não quiserem caminhar, os acontecimentos os arrastarão ou passarão sobre eles!
Imensas calamidades podem ainda pesar sobre o mundo. Os exércitos do Apocalipse um dia talvez desencadearão os quatro flagelos. O santuário será depurado. A santa e severa pobreza enviará seus apóstolos para sustentar todo aquele que cambalear, reanimar aquele que estiver fatigado e espalhar o óleo santo em todas as feridas!
O despotismo e a anarquia, esses dois monstros ávidos de sangue, dilacerar-se-ão e aniquilar-se-ão um ao outro depois de serem mutuamente sustentados, por pouco tempo, pelo próprio entrelaçamento de sua luta.
E o governo do futuro será aquele cujo modelo é mostrado na natureza pela família, no ideal religioso pela hierarquia dos pastores. Os eleitos devem reinar com Jesus Cristo durante mil anos, dizem as tradições apostólicas: ou seja, durante uma seqüência de séculos, a inteligência e o amor dos homens de elite dedicados aos encargos do poder administrarão os interesses e os bens da família universal.
Então, segundo a promessa do Evangelho só haverá um rebanho e um pastor.


XVI. O NÚMERO DEZESSEIS

Dezesseis é o número do templo.
Digamos o que será o templo do futuro.
Quando o espírito de inteligência e de amor tiver se revelado, toda trindade manifestar-se-á em sua verdade e em sua glória.
A humanidade transformada em rainha e, como que ressuscitada, terá a graça da infância em sua poesia, o vigor da juventude em sua razao e a sabedoria da idade madura em suas obras.
Todas as formas que o pensamento divino revestiu sucessivamente renascerão imortais e perfeitas.
Todos os traços que a arte sucessiva das nações tinha esboçado reunir-se-ão e formarão a imagem completa de Deus.
Jerusalém reconstruirá o templo de Jeová de acordo com o modelo profetizado por Ezequiel; e o Cristo, novo e eterno Salomão, nele cantará, debaixo de lambris de cedro e de ciprestes, suas núpcias com a santa liberdade, a jovem esposa do cântico.
Mas Jeová terá largado seu raio para abençoar com as duas mãos o noivo e a noiva: aparecerá sorridente entre os dois esposos e alegrar-se-á por ser chamado de pai.
Entretanto, a poesia do Oriente, em suas mágicas lembranças, ainda o chamará de Brama e Júpiter. A índia ensinará a nossos climas encantados as fábulas maravilhosas de Vishnu, e experimentaremos na fronte ainda ensangüentada de nosso Cristo bem-amado a tripla coroa de pérolas da mística trimurti. Vênus purificada sob o véu de Maria não mais chorará seu Adônis.
O esposo ressuscitou para não mais morrer, e o javali infernal encontrou a morte em sua passageira vitória.
Reerguei-vos, templos de Delfos e Éfeso! O deus da luz e das artes tornou-se o Deus do mundo, e o verbo de Deus concorda em ser chamado de Apolo! Diana não reinará mais como viúva nos campos solitários da noite; seu crescente prateado está agora sob os pés da esposa.
Mas Diana não foi vencida por Vênus; seu Endimião acaba de despertar, e a virgindade vai orgulhar-se de ser mãe!
Sai da tumba, ó Fídias, e alegra-te com a destruição de teu primeiro Júpiter: é agora que vais gerar um Deus!
Ó Roma! Que teus templos reergam-se ao lado de tuas basílicas; sê ainda a rainha do mundo e panteão das nações; que Virgílio seja coroado no capitólio pelas mãos de São Pedro; e que o Olimpo e o Carmelo unam suas divindades sob o pincel de Rafael!
Transfigurai-vos, antigas catedrais de nossos pais; arremessei até as nuvens vossas flechas cinzeladas e vivas, e que a pedra conte por figuras animadas as sombrias lendas do Norte, alegradas pelos apólogos dourados e maravilhosos do Alcorão!
Que o Oriente adore Jesus Cristo em suas mesquitas, e que nos minaretes de uma nova Santa Sofia a cruz se eleve em meio ao crescente!
Que Maomé liberte a mulher para dar ao verdadeiro crente as huris com que tanto sonhou, e que os mártires do Salvador ensinem castas carícias aos belos anjos de Maomé.
Toda a terra revestida com os ricos ornamentos que todas as artes lhe bordaram será então um templo magnífico, cujo padre eterno será o homem!
Tudo o que foi verdadeiro, tudo o que foi belo, tudo o que foi doce nos séculos passados reviverá gloriosamente nessa transfiguração do mundo.
E a forma bela continuará inseparável da idéia verdadeira, como o corpo será um dia inseparável da alma, quando a alma, tendo alcançado todo o seu poder, terá feito para si um corpo à sua imagem.
Esse será o reino do céu sobre a terra, e os corpos serão os templos da alma, da mesma forma que o universo regenerado será o templo de Deus.
E os corpos e as almas, e a forma e o pensamento, e o universo inteiro serão a luz, o Verbo e a revelação permanente e visível de Deus. Amém! Assim seja!


XVII. O NÚMERO DEZESSETE

Dezessete é o número da estrela; é o da inteligência e do amor.
Inteligência guerreira, audaciosa, cúmplice do divino Prometeu, primogênita de Lúcifer, louvor a ti em tua audácia! Quiseste saber para ter, desafiaste todos os trovões e afrontaste todos os abismos!
Inteligência, tu a quem os pobres pecadores amaram até o delírio, até o escândalo, até a reprovação! Direito divino do homem, essência e alma da liberdade, louvor a ti! Pois perseguiram-te pisoteando, por ti, todos os sonhos mais caros de sua imaginação, os fantasmas mais amados de seu coração!
Por ti foram repelidos e proscritos; por ti suportaram a prisão, o desenlace, a fome, a sede, o abandono daqueles que amavam e as sombrias tentações do desespero! Eras o direito deles, e eles conquistaram-te! Agora eles podem chorar e crer, podem submeter-se e rezar!
Caim arrependido teria sido maior do que Abel: é o legítimo orgulho satisfeito que tem o direito de se fazer humilde!
Creio porque sei por que e como é preciso crer; creio porque amo e porque não temo mais nada. Amor! amor! redentor e reparador sublime; tu que fazes tanta felicidade de tantas torturas, tu, o sacrificador do sangue e das lágrimas, tu que és a própria virtude e o salário da virtude; força da resignação, liberdade da obediência, alegria das dores, vida da morte, louvor, louvor e glória a ti! Se a inteligência é uma lâmpada, és a sua chama; se é o direito, és o dever; se é a nobreza, és a felicidade! Amor pleno de orgulho e pudor nos mistérios, amor divino, amor oculto, amor insano e sublime, Titã que toma o céu com duas mãos e que o força a descer, último e inefável segredo da viuvez cristã, amor eterno, amor infinito e ideal que seria suficiente para criar mundos, amor! amor! bênção e glória a ti! Glória às inteligências que se encobrem para não ofender os olhos doentes! Glória ao direito que se transforma inteiramente em dever e que se torna a devoção! às almas viúvas que amam e consumam-se sem serem amadas! aos que sofrem e não fazem nada sofrer, aos que perdoam os ingratos, aos que amam seus inimigos! Oh! felizes sempre, felizes mais do que nunca os que se empobrecem e que se esgotam para se dar! Felizes as almas que fazem sempre tua paz! Felizes os corações puros e simples que não se acham melhor do que ninguém! Humanidade minha mãe, humanidade filha e mãe de Deus, humanidade concebida sem pecado, Igreja universal, Maria! Feliz de quem tudo ousou para te conhecer e te entender, e de quem está pronto a tudo sofrer para te servir e te amar!

XVIII. O NÚMERO DEZOITO

Esse número é o do dogma religioso, que é toda poesia e todo mistério.
O Evangelho diz que, quando da morte do Salvador, o véu do templo rasgou-se, porque essa morte manifestou o triunfo da devoção, o milagre da caridade, o poder de Deus no homem, a humanidade divina e a divindade humana, o último e o mais sublime dos arcanos, a última palavra de todas as iniciações.
Mas o Salvador sabia que não seria compreendido a princípio, e disse: Não suportaríeis agora toda a luz de minha doutrina; mas, quando se manifestar o espírito de verdade, ele vos ensinará toda verdade e sugerirá o sentido do que eu vos disse.
Ora, o espírito de verdade é o espírito de ciência e de inteligência, o espírito de força e de conselho.
Foi esse espírito que se manifestou solenemente na Igreja romana, quando ela declarou nos quatro artigos do decreto de 12 de dezembro de 1845:
1º Que, se a fé for superior à razão, a razão deve apoiar as inspirações da fé;
2º Que a fé e a ciência tem cada uma seu domínio separado, e que uma não deve usurpar as funções da outra;
3º Que é próprio da fé e da graça não enfraquecer, mas, ao contrário, afirmar e desenvolver a razão;
4º Que o concurso da razão, que examina não as decisões da fé mas as bases naturais e racionais da autoridade que decide, longe de prejudicar a fé, não poderia senão ser-lhe útil; em outras palavras, que a fé, perfeitamente racional em seus princípios, não deve temer, mas deve, ao contrário, desejar o exame sincero da razão.
Semelhante decreto é toda uma revolução religiosa acabada, e a inauguração do Espírito Santo na terra.

XIX. O NÚMERO DEZENOVE

É o número da luz.
É a existência de Deus provada pela própria idéia de Deus.
Ou é preciso dizer que o Ser imenso é um túmulo universal, ou que se move automaticamente, uma forma sempre morta e cadavérica, ou é preciso admitir o princípio absoluto da inteligência e da vida.
A luz universal está morta ou viva? Fatalmente dedicada à obra da destruição ou providencialmente dirigida para a criação universal?
Se Deus não existe, a inteligência é apenas uma decepção pois ela carece de absoluto e seu ideal é uma mentira.
Sem Deus, o ser é um nada que se afirma, e a vida, uma morte que se disfarça.
A luz é uma noite sempre enganada pela miragem dos sonhos.
O primeiro e o mais essencial ato de fé é pois este.
O Ser é, e o ser do ser, a verdade do ser é Deus.
O Ser é vivo com inteligência, e a inteligência viva do Ser absoluto é Deus.
A luz é real e vivificante; ora, a realidade e a vida de toda luz é Deus.
O Verbo da razão universal é uma afirmação e não uma negação.
Cegos os que não vêem que a luz física é apenas o instrumento do pensamento!
Somente o pensamento vê a luz e a produz empregando-a em benefício próprio.
A afirmação do ateísmo é o dogma da noite eterna; a afirmação de Deus é o dogma da luz!
Vamos parar aqui, no décimo nono número, embora o alfabeto sagrado tenha vinte e duas letras; as dezenove primeiras são as chaves da teologia oculta. As outras são as chaves da natureza; voltaremos a elas na terceira parte desta obra.
Resumamos o que dissemos de Deus citando uma bela evocação emprestada da liturgia israelita. É uma página do Kether-Malkuth, poema cabalístico do rabino Salomão, filho de Gabirol.

"Sois um, o começo de todos os números, o fundamento de todos os edifícios; sois um e, no segredo de vossa unidade, os homens mais sábios perdem-se porque não a conhecem. 
Sois um, e vossa unidade nunca diminui, nem aumenta, nem sofre nenhuma alteração. 
Sois um, mas não como o um em matéria de cálculo, pois vossa unidade não admite nem multiplicação, nem mudança, nem fórmula. 
Sois um, para quem nenhuma de minhas fantasias pode fixar definição: eis por que vigiarei minha conduta, evitando cometer faltas com a língua. 
Sois um enfim, cuja excelência é tão elevada que não pode cair de maneira alguma, e não como em um que pode deixar de ser.
"Sois existente; entretanto, o entendimento e a vista dos mortais não podem atingir vossa existência nem colocar em vós o onde, o como e o porquê. 
Sois existente, mas em vós mesmo, uma vez que outro não pode existir convosco. 
Sois existente desde antes do tempo e em lugar algum. 
Sois enfim existente e vossa existência é tão oculta e tão profunda que ninguém pode descobri-Ia ou penetrar seu segredo.
"Sois vivo, mas não desde um tempo conhecido e fixo; sois vivo, mas não por um espírito e uma alma; pois sois a alma de todas as almas. Sois vivo, mas não como as vidas dos mortais, que são comparadas a um sopro, e cujo fim será o alimento dos vermes. 
Sois vivo, e aquele que puder atingir vossos mistérios desfrutará as delícias eternas e viverá para sempre.
"Sois grande, e perto de vossa grandeza todas estas grandezas se curvam, e tudo o que há de mais excelente torna-se defeituoso. 
Sois grande, acima de qualquer imaginação, e elevai-vos acima de todas as hierarquias celestes. 
Sois grande, acima de toda grandeza, e sois exaltado acima de qualquer louvor. 
Sois forte, e nenhuma de vossas criaturas fará as obras que fazeis e nem sua força poderá ser comparada à vossa. Sois forte, e é a vós que pertence essa força invencível que não muda nem se altera nunca. 
Sois forte, e por vossa magnanimidade perdoais no momento de vossa mais ardente cólera, e mostrai-vos paciente para com os pecadores. 
Sois forte, e vossas misericórdias que sempre existiram estendem-se para todas as vossas criaturas. Sois a luz eterna que as almas puras verão e que a nuvem dos pecados ocultará aos olhos dos pecadores. Sois a luz que é oculta neste mundo e visível no outro, onde a glória do Senhor se mostra. Sois soberano, e os olhos do entendimento que desejam vervos estão inteiramente espantados por só poderem atingir de vós uma parte e nunca o todo. 
Sois o Deus dos deuses, testemunham-no todas vossas criaturas; e em honra desse grande nome todas devem render-vos culto. 
Sois Deus, e todas as criaturas são vossas servidoras e vossas adoradoras; vossa glória não é embaçada mesmo que outros sejam adorados, porque a intenção deles é a de se dirigir a vós; são como cegos, cujo objetivo é seguir o grande caminho, e perdem-se. Um afoga-se num poço e o outro cai numa fossa; todos, em geral, acreditam ter alcançado seus desejos e, no entanto, cansaram-se em vão. Mas vossos servidores são como clarividentes que andam num caminho seguro, e que dele nunca se afastam, nem à direita, nem à esquerda, até que entrem no adro do palácio do rei. 
Sois Deus que sustentais por vossa deidade todos os seres e que socorreis por vossa unidade todas as criaturas. Sois Deus, e não há diferença entre vossa deidade, vossa unidade, vossa eternidade e vossa existência; pois tudo é um mesmo mistério; e, embora os nomes variem, tudo retorna ao mesmo. Sois sábio, e essa ciência, que é a fonte da vida, emana de vós mesmo; e em comparação com vossa ciência os homens mais sábios são estúpidos. 
Sois sábio e o antigo dos antigos, e a ciência sempre alimentou-se convosco. 
Sois sábio, e não aprendesses a ciência com ninguém, e tampouco a adquirisses de outro senão de vós. Sois sábio e, como um operário e um arquiteto, reservasses de vossa ciência uma divina vontade, num tempo marcado para atrair o ser do nada; do mesmo modo que a luz que sai dos olhos é atraída de seu próprio centro sem nenhum instrumento ou ferramenta. 
Essa divina vontade cavou, traçou, purificou e fundiu; ordenou ao nada abrir-se, ao ser aprofundar-se e ao mundo estender-se. Mediu os céus com o palmo, com seu poder reuniu o pavilhão das esferas, com o laço de seu poder cerrou as cortinas das criaturas do universo e, tocando com sua força a ponta da cortina da criação, uniu a parte superior à inferior."
Extraído das orações do Kippur

Demos a essas ousadas especulações cabalísticas a única forma que lhes convém, a da poesia ou da inspiração do coração.
As almas crentes não precisam das hipóteses racionais contidas nessa explicação nova das figuras da Bíblia, mas os corações sinceros e afligidos pela dúvida, e que a crítica do século dezoito atormenta, compreenderão ao lê-la que a própria razão sem a fé pode encontrar no livro sagrado outra coisa além de escolhos; se os véus com que os textos divinos são cobertos projetam uma grande sombra, essa sombra é tão maravilhosamente desenhada pelas oposições da luz que se torna a única imagem inteligível de um ideal divino.
Ideal incompreensível como o infinito e indispensável como a própria essência do mistério.


ARTIGO II
Solução do segundo problema
A VERDADEIRA RELIGIÃO

A religião existe na humanidade como no amor.
É única como ele.
Como ele, existe ou não existe nesta ou naquela alma; mas, seja aceita ou negada, está na humanidade, está, portanto, na vida, está na natureza, é incontestável diante da ciência e mesmo diante da razão.
A verdadeira religião é a que sempre existiu, que existe e que sempre existirá.
Podem-nos dizer que a religião é isto ou aquilo; a religião é o que é. A religião é ela, e as falsas religiões são superstições dela copiadas, dela emprestadas, sombras mentirosas dela própria.
Pode-se dizer da religião o que se diz da arte verdadeira. As tentativas bárbaras de pintura ou escultura são tentativas da ignorância para se chegar à verdade. A arte prova-se por si, brilha com seu próprio esplendor, é única e eterna como a beleza.
A verdadeira religião é bela, e é por esse caráter divino que se impõe aos respeitos da ciência e ao assentimento da razão.
A ciência não poderia, sem temeridade, afirmar ou negar as hipóteses do dogma que são verdades para a fé; mas pode reconhecer, em certos aspectos, a única religião verdadeira, ou seja, a única que merece o nome de religião, reunindo todos os aspectos que convêm a essa grande e universal aspiração da alma humana.
Uma só coisa evidentemente divina manifestou-se para todos no mundo.
É a caridade.
A obra da verdadeira religião deve ser a de produzir, conservar e difundir o espírito de caridade. Para alcançar esse objetivo, é preciso que ela própria tenha todas as características da caridade, de modo que se possa bem defini-la, nomeando-a de caridade organizada.
Ora, quais são as características da caridade?
É São Paulo quem vai nos ensinar.
A caridade é paciente.
Paciente como Deus, porque ela é eterna como ele. Sofre as perseguições e nunca persegue ninguém.
É benevolente e indulgente, chamando para si os pequenos e não rechaçando os grandes.
Não é invejosa. A quem e a que invejaria, não tem a melhor parte que nunca lhe será tirada?
Não é nem inquieta e nem intrigante.
Não tem orgulho, ambição, egoísmo, ira.
Nunca supõe o mal e nunca triunfa pela injustiça, pois põe toda sua alegria na verdade.
Suporta tudo sem jamais tolerar o mal.
Crê em tudo, sua fé é simples, submissa, hierárquica e universal.
Sustenta tudo, e nunca impõe fardos que não carregasse antes.
A religião é paciente, é a religião dos grandes trabalhadores do pensamento: é a religião dos mártires.
É benevolente como o Cristo e os apóstolos, como os Vicentes de Paulo e os Fenelons.
Não deseja nem as dignidades nem os bens da terra. 
É a religião dos pais do deserto, de São Francisco de Assis e de São Bruno, das irmãs de caridade e dos irmão de São João de Deus.
Não é nem inquieta nem intrigante, ela reza, faz o bem e espera. É humilde, é doce, só inspira a devoção e o sacrifício. Tem, enfim, todas as características da caridade, porque é a própria caridade.
Os homens, ao contrário, são impacientes, perseguidores, invejosos, cruéis, ambiciosos, injustos e mostram-se como tais em nome dessa religião que puderam caluniar, mas que nunca obrigarão a mentir. 
Os homens passam, e a verdade é eterna.
Filha da caridade e criando por sua vez a caridade, a verdadeira religião é essencialmente realizadora; acredita nos milagres da fé, porque os cumpre todos os dias quando faz a caridade. Uma religião que faz a caridade pode vangloriar-se de realizar todos os sonhos do amor divino. 
Assim, a fé da Igreja hierárquica transforma o mistério em realismo pela eficácia de seus sacramentos. Não mais signos, não mais figuras que não tenham sua força na graça e que não dêem realmente o que prometem. A fé anima tudo, torna tudo de algum modo visível e palpável; as próprias parábolas de Jesus Cristo tomam um corpo e uma alma. 
Mostra-se em Jerusalém a casa do mau rico. 
Os simbolismos esparsos das religiões primitivas, abandonados pela ciência e privados da vida da fé, assemelhavam-se a essas ossadas embranquecidas que cobriam o campo de Ezequiel. 
O espírito do Salvador, o espírito de fé, o espírito de caridade sopraram esse pó, e tudo o que estava morto recuperou uma vida tão real que não se reconhece mais nesses vivos de hoje os cadáveres de ontem.

Grande Pantáculo tirado da visão de São João

E por que seriam reconhecidos, uma vez que o mundo renovou-se, uma vez que São Paulo queimou no Éfeso os livros dos hierofantes. São Paulo era pois um bárbaro, e não estava cometendo um atentado contra a ciência? Não, mas ele queimava os sudários dos ressuscitados para fazê-los esquecer a morte. Por que então lembramos hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que então lembramos hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que relacionamos as figuras da Bíblia com as alegorias de Hermes? Será para condenar São Paulo, para trazer a dúvida aos crentes? Certamente não, pois os crentes não necessitam de nosso livro, não o lerão, não o quererão compreender. Mas queremos mostrar à multidão inumerável dos que duvidam que a fé relaciona-se à razão de todos os séculos, à ciência de todos os sábios. Queremos forçar a liberdade humana e respeitar a autoridade divina, a razão a reconhecer as bases da fé, para que a fé e a autoridade, por sua vez, nunca mais proscrevam nem a liberdade nem a razão.

ARTIGO III
Solução do terceiro problema
RAZÃO DOS MISTÉRIOS

Sendo a fé a aspiração ao desconhecido, o objeto da fé é absoluta e necessariamente o mistério.
Para formular suas aspirações, a fé é forçada a emprestar do conhecido aspirações e imagens.
Mas ela especializa o emprego dessas formas ao reuni-las de uma maneira impossível na ordem conhecida. Tal é a profunda razão do aparente absurdo do simbolismo.
Demos um exemplo:
Se a fé dizia que Deus é impessoal, poder-se-ia concluir daí que Deus é apenas uma palavra ou, no máximo, uma coisa.
Se ela dizia que Deus é uma pessoa, o infinito inteligente seria representado sob a forma necessariamente limitada de um indivíduo.
Ela diz Deus é um em três pessoas para exprimir que se concebe em Deus a unidade e o número.
A fórmula do mistério exclui necessariamente a própria inteligência dessa fórmula, na medida em que empresta do Verbo coisas conhecidas, pois se fosse compreendida exprimiria o conhecido e não o desconhecido.
Pertenceria, então, à ciência e não mais à religião, isto é, à fé.
O objeto da fé é um problema de matemática onde o x escapa aos procedimentos de nossa álgebra.
As matemáticas absolutas provam somente a necessidade e, por conseguinte, a existência desse conhecido representado pelo x intraduzível.
Ora, por mais que a ciência avance em seu progresso indefinido, mas sempre relativamente finito, nunca encontrará na língua do finito a expressão completa do infinito. O mistério é, portanto, eterno.
Fazer entrar na lógica do conhecido os termos de uma profissão de fé é fazê-los sair da fé que tem por bases positivas o ilogismo, isto é, a impossibilidade de explicar logicamente o desconhecido.
Para os israelitas, Deus está separado da humanidade, não vive nas criaturas, é um egoísmo infinito.
Para os muçulmanos, Deus é uma palavra diante da qual nos prosternamos sobre a fé de Maomé.
Para os cristãos, Deus revelou-se na humanidade, prova-se pela caridade, reina pela ordem que constitui a hierarquia.
A hierarquia é guardiã do dogma, cuja letra e cujo espírito quer que respeitemos. Os sectários que, em nome de sua razão, ou melhor, de sua desrazão individual, tocaram o dogma, perderam, por esse mesmo fato, o espírito de caridade, excomungaram a si próprios.
O dogma católico, isto é, universal, merece esse belo nome resumindo todas as aspirações religiosas do mundo; ele afirma a unidade de Deus com Moisés e Maomé, reconhece em si a trindade infinita da geração eterna com Zoroastro, Hermes e Platão, concilia com o Verbo único de São João os números vivos de Pitágoras, eis o que a ciência e a razão podem constatar. É portanto diante da própria razão e diante da ciência o dogma mais perfeito, isto é, o mais perfeito que alguma vez se produziu no mundo. Que a ciência e a razão nos concedam isso, não lhes pediremos mais nada.
Substituir o despotismo legítimo da lei pelo arbitrário humano, pôr, em outras palavras, a tirania no lugar da autoridade é obra de todos os protestantismos e de todas as democracias. O que os homens chamam de liberdade é a sanção da autoridade ilegítima ou, antes, a ficção do poder não sancionado pela autoridade.
João Calvino protestava contra as fogueiras de Roma para se dar o direito de queimar Miguel Servet. Todo povo que se libertou de um Carlos I ou de um Luís XVI submeteu-se a um Robespierre ou a um Cromwel, e existe um antipapa mais ou menos absurdo por trás de todos os protestos contra o papado legítimo.
A divindade de Jesus Cristo só existe na Igreja católica, para a qual ele transmite hierarquicamente sua vida e seus poderes divinos. Essa divindade é sacerdotal e real por comunhão, mas fora dessa comunhão toda afirmação da divindade de Jesus Cristo é idolátrica, porque Jesus Cristo não poderia ser um Deus separado.
Pouco importa à verdade católica o número dos protestantes.
Se todos homens fossem cegos, essa seria uma razão para negar a existência do sol?
A razão, protestando contra o dogma, prova suficientemente que não o inventou, mas é forçada a admirar a moral que resulta desse dogma. Ora, se a moral é uma luz, é preciso que o dogma seja um sol, a claridade não vem das trevas.
Entre os abismos do politeísmo e do deísmo absurdo e limitado, só há um meio possível: o mistério da santíssima trindade.
Entre o ateísmo especulativo e o antropomorfismo só há um meio possível: o mistério da encarnação.
Entre a fatalidade imoral e a responsabilidade draconiana que decidiria pela danação de todos os seres, só há um meio possível: o mistério da redenção.
A trindade é a fé.
A encarnação é a esperança.
A redenção é a caridade.
A trindade é a hierarquia.
A encarnação é a autoridade divina da Igreja.
A redenção é o sacerdócio único, infalível, indefectível e católico.
Somente a Igreja católica possui um dogma invariável e encontra-se por sua própria constituição na impossibilidade de corromper a moral; ela não inova, explica. Assim, por exemplo, o dogma da imaculada concepção não é novo, estava inteiramente contido no Théotokon do concílio de Éfeso, e o Théotokon é uma conseqüência rigorosa do dogma católico da encarnação.
Da mesma forma, a Igreja católica não faz excomunhões, ela as declara e só ela as pode declarar, porque é a única guardiã da unidade.
Fora da barca de Pedro, só há o abismo. Os protestantes assemelham-se às pessoas que, cansadas da arfagem, jogar-se-iam na água para evitar o enjôo.
E da catolicidade, tal qual é constituída na Igreja católica, que é preciso dizer o que Voltaire disse de Deus com tanta ousadia.
Se não existisse, seria preciso inventá-la. Mas, se um homem fosse capaz de inventar o espírito de caridade, teria também inventado Deus. A caridade não se inventa, revela-se por suas obras, e é então que se pode gritar com o Salvador do mundo: Felizes os que têm o coração puro, pois verão a Deus!
Entender o espírito de caridade é ter a inteligência de todos os mistérios.

ARTIGO IV
Solução do quarto problema
A RELIGIÃO PROVADA PELAS OBJEÇÕES QUE LHE SÃO OPOSTAS

As objeções que se pode fazer contra a religião podem ser feitas seja em nome da razão, seja em nome da fé.
A ciência não pode negar os fatos da existência da religião, de seu estabelecimento e de sua influência sobre os acontecimentos da história. É proibido a ela tocar no dogma, o dogma pertence inteiramente à fé.
A ciência arma-se comumente contra a religião com uma série de fatos que tem o direito de apreciar, que de fato aprecia com severidade, mas que a religião condena mais energicamente ainda do que a ciência.
Assim fazendo, a ciência dá razão à religião e censura a si própria; carece de lógica, acusa a desordem que toda paixão rancorosa introduz no espírito dos homens e a necessidade incessante que ele tem de ser reerguido e dirigido pelo espírito de caridade.
A razão, por sua vez, examina o dogma e considera-o absurdo.
Mas, se não o fosse, a razão compreendê-lo-ia; se ela o compreendesse, não seria mais a fórmula do desconhecido.
Seria uma demonstração matemática do infinito.
Seria o infinito finito, o desconhecido conhecido, o incomensurável medido, o indizível nomeado.
Isso quer dizer que o dogma só deixaria de ser absurdo diante da razão, para se tornar, diante da fé, da ciência, da razão e do bom senso reunidos, o mais monstruoso e o mais impossível de todos os absurdos.
Restam as objeções da fé dissidente.
Os israelitas, nossos pais em religião, censuram-nos por termos atentado contra a unidade de Deus, por termos mudado uma lei imutável e eterna, por adorarmos a criatura no lugar do criador.
Essas censuras são fundamentadas numa noção perfeitamente falsa do cristianismo.
Nosso Deus é o Deus de Moisés, Deus único, imaterial, infinito, o só adorável e sempre o mesmo.
Como os judeus, acreditamo-lo presente em todos os lugares, mas, como eles deveriam fazer, acredítamo-lo vivo, pensante e amante na humanidade e adoramo-lo em suas obras.
Não mudamos sua lei, pois o decálogo dos israelitas é também a lei dos cristãos.
A lei é imutável, porque está fundamentada em princípios eternos da natureza; mas o culto exigido pelas necessidades do homem pode variar e modificar-se com os homens.
O que o culto significa é imutável, mas o culto modifica-se como as línguas.
O culto é um ensinamento, é uma língua, é preciso traduzi-lo quando as nações não o compreendem mais.
Traduzimos e não destruímos o culto de Moisés e dos profetas.
Adorando Deus na criação, não estamos adorando a própria criação.
Adorando Deus em Jesus Cristo, é somente Deus que adoramos, mas Deus unido à humanidade.
Tornando a humanidade divina, o cristianismo revelou a divindade humana.
O Deus dos judeus era inumano, porque eles não o compreendiam em suas obras.
Somos, portanto, mais israelitas que os próprios israelitas. No que acreditam, acreditamos com eles e melhor que eles. Acusam-nos de estarmos separados dele e são eles, ao contrário, que querem estar separados de nós.
Esperamo-los de coração e braços abertos.
Somos, como eles, discípulos de Moisés.
Como eles, viemos do Egito e detestamos sua servidão. Mas nós estamos na terra prometida, e eles obstinam-se em permanecer e morrer no deserto.
Os muçulmanos são os bastardos de Israel, ou melhor, são seus filhos deserdados, como Esaú.
Sua crença é ilógica, pois admitem que Jesus é um grande profeta, e tratam os cristãos como infiéis.
Reconhecem a inspiração divina de Moisés e não vêem os judeus como irmãos.
Acreditam cegamente em seu cego profeta, o fatalista Maomé, o inimigo do progresso e da liberdade.
Não tiremos, no entanto, de Maomé a glória de ter proclamado a unidade de Deus entre os árabes idólatras.
Encontram-se no Alcorão páginas puras e sublimes.
É lendo essas páginas que se pode dizer com os filhos de Ismael: Não existe outro Deus senão Deus, e Maomé é seu profeta.
Há três tronos no céu para os três profetas das nações; mas, no fim dos tempos, Maomé será substituído por Elias.
Os muçulmanos nada censuram nos cristãos, eles injuriam-nos.
Chamam-nos de infiéis e de giaurs, isto é, cães. Não temos nada a lhes responder.
Não se deve refutar os turcos e os árabes, é preciso instruí-los e civilizá-los.
Restam os cristãos dissidentes, isto é, aqueles que, tendo rompido o laço de união, declaram-se estrangeiros à caridade da Igreja.
A ortodoxia grega, irmã gêmea da Igreja romana, que não cresceu desde sua separação, que não tem mais importância nos faustos religiosos, que, desde Fócio, não inspirou uma única eloqüência; Igreja que se tornou inteiramente temporal e cujo sacerdócio não é mais que uma função regulada pela política imperial do czar de todas as Rússias; múmia curiosa da Igreja primitiva, colorida e dourada com todas as suas lendas e com todos os seus ritos que os popes não compreendem mais; sombra de uma Igreja viva, mas que quis parar quando essa Igreja avançava e que não é mais que uma silhueta apagada e sem cabeça.
Depois, os protestantes, esses eternos reguladores da anarquia, que romperam o dogma e tentam sempre preenchê-lo com raciocínios, como o tonel das Danaides; esses fantasistas religiosos cujas inovações em sua totalidade são negativas, que formularam para uso próprio um desconhecido pretensamente mais conhecido, mistérios mais explicados, um infinito mais definido, uma imensidão mais restrita, uma fé mais duvidosa, que quintessenciaram o absurdo, cindiram a caridade e tomaram atos de anarquia pelos princípios de uma hierarquia para sempre impossível; esses homens que querem realizar a salvação somente pela fé, porque a caridade lhes escapa e que nada mais podem realizar, mesmo sobre a terra, pois seus pretensos sacramentos não são mais que farsas alegóricas, não dão mais a graça, não fazem mais ver a Deus nem tocar em Deus, não são mais, em uma palavra, os signos da onipotência da fé, mas as testemunhas forçadas da impotência eterna da dúvida.
Foi, portanto, contra a própria fé que a reforma protestou. Os protestantes tiveram razão contra o zelo inconsiderado e perseguidor que queria forçar as consciências. Exigiram o direito de duvidar, o direito de ter menos religião ou de não a ter absolutamente; derramaram seu sangue por esse triste privilégio; conquistaram-no, possuem-no, mas não nos tirarão o de lastimá-los e de amá-los. Quando sentirem novamente a necessidade de acreditar, quando seu coração revoltar-se por sua vez contra a tirania de uma razão falseada, quando se cansarem das frias abstrações de seu dogma arbitrário, das vãs observâncias de seu culto sem efeito, quando sua comunhão sem presença real, suas igrejas sem divindade e sua moral sem perdão os aterrorizarem enfim, assim que ficarem doentes da nostalgia de Deus, não se levantarão como o filho pródigo e não virão jogar-se aos pés do sucessor de Pedro dizendo-lhe: Pai, pecamos contra o céu e contra vós, já não somos dignos de ser chamados vossos filhos, mas incluí-nos ao menos entre vossos mais humildes servidores.
Não falaremos da crítica de Voltaire. Esse grande espírito estava dominado por um ardente amor pela verdade e pela justiça, mas faltava-lhe esta retidão do coração que dá a inteligência da fé. Voltaire não podia admitir a fé, porque não sabia amar. O espírito de caridade não se revelou a essa alma sem ternura, e ele criticou amargamente um fogo cujo calor não sentia e uma lâmpada cuja luz não via. Se a religião fosse tal qual viu, teria tido mil vezes razão em atacá-la e seria preciso ajoelhar-se diante do heroismo de sua coragem. Voltaire seria o messias do bom senso, o hércules destruidor do fanatismo. Mas este homem ria demais para compreender aquele que disse: Felizes dos que choram, e a filosofia do riso nunca terá nada em comum com a religião das lágrimas.
Voltaire parodiou a Bíblia, o dogma, o culto, depois ridicularizou, achincalhou, vilipendiou sua paródia.
Apenas aqueles que vêem a religião na paródia de Voltaire podem se ofender com isso. Os voltairianos assemelham-se às rãs da fábula que saltam sobre as vigas e, em seguida, zombam da majestade real. São livres para tomar a viga por um rei, são livres para refazer esta caricatura romana de que, outrora, Tertuliano ria, e que representava o Deus dos cristãos na figura de um homem com cabeça de asno. Os cristãos darão de ombros ao ver essa brejeirice e pedirão a Deus pelos pobres ignorantes que pretendiam insultá-los.
O senhor conde Joseph de Maistre, depois de ter representado, num de seus mais eloqüentes paradoxos, o carrasco como um ser sagrado e como uma encarnação permanente de justiça divina na terra, queria que se erguesse para o ancião de Ferney uma estátua pela mão do carrasco. Existe profundidade nesse pensamento. Voltaire, com efeito, foi também, no mundo, um ser ao mesmo tempo providencial e fatal, dotado de insensibilidade para a realização de suas terríveis funções. Foi, no domínio da inteligência, um executor das grandes obras, um executor armado com a própria justiça de Deus.
Deus enviou Voltaire entre o século de Bossuet e o de Napoleão para aniquilar tudo o que separa esses dois gênios e reuni-los num só.
Era o Sansão do espírito, sempre pronto a sacudir as colunas do templo; mas, para fazê-lo girar, a contragosto, a pedra do moinho do progresso religioso, a Providência parecia ter cegado seu coração.

ARTIGO V
Solução do último problema
SEPARAR A RELIGIÃO DA SUPERSTIÇÃO E DO FANATISMO

A superstição, da palavra latina superstes, sobrevivente, é o símbolo que sobreviveu à idéia, é a forma preferida à coisa, é o rito sem razão, é a fé tornada insensata, porque se isola. E, por conseguinte, o cadáver da religião, a morte da vida, é a inspiração substituída pelo embrutecimento.
O fanatismo é a superstição apaixonada, seu nome vem da palavra fanum, que significa templo, é o templo colocado no lugar de Deus, é a honra do sacerdote substituída pelo interesse humano e temporal do padre, é a paixão miserável do homem explorando a fé do crente.
Na fábula do asno carregado de relíquias, La Fontaine diz-nos que o animal acreditou ser adorado, não nos diz que algumas pessoas acreditaram de fato adorar o animal. Essas pessoas eram os supersticiosos.
Se alguém tivesse rido de suas tolices, teriam-no talvez assassinado, pois da superstição ao fanatismo há um só passo.
A superstição é a religião interpretada pela tolice; o fanatismo é a religião servindo de pretexto à fúria.
Os que confundem proposital e preconceituosamente a própria religião com a superstição e o fanatismo emprestam à tolice suas prevenções cegas e talvez emprestassem ao fanatismo suas injustiças e seus ódios.
Inquisidores ou participantes dos Massacres de Setembro, que importam os nomes? A religião de Jesus Cristo condena e sempre condenou os assassinos.

RESUMO DA PRIMEIRA PARTE EM FORMA DE DIÁLOGO
A FÉ, A CIÊNCIA, A RAZÃO

A CIÊNCIA - Nunca me fareis acreditar na existência de Deus.
A FÉ - Não tendes o privilégio de acreditar, mas nunca me provareis que Deus não existe.
A CIÊNCIA - Para vo-lo provar, é preciso que, em primeiro lugar, eu saiba o que é Deus.
A FÉ - Não o sabereis nunca. Se soubésseis, poderíeis ensinarmo, e, quando eu o soubesse, não mais acreditaria nele.
A CIÊNCIA - Acreditais, então, sem saber em que estais acreditando?
A FÉ - Ali! não joguemos com as palavras. Sois vós quem não sabeis em que eu acredito, precisamente porque vós não o sabeis. Tendes a pretensão de ser infinita? Não sois interrompida a cada instante pelo mistério? O mistério é para vós uma ignorância que reduziria ao nada o finito de vosso saber, se eu não o iluminasse com minhas ardentes inspirações, e quando dizeis: Eu não sei mais, eu gritaria: Quanto a mim, começo a acreditar.
A CIÊNCIA - Mas vossas aspirações e seu objeto são e só podem ser hipóteses para mim.
A FÉ - Sem dúvida, mas são certezas para mim, uma vez que sem essas hipóteses eu duvidaria até mesmo de vossas certezas.
A CIÊNCIA - Mas, se começais onde eu paro, começais temerariamente muito cedo. Meus progressos atestam que eu ando sempre.
A FÉ - Que importam os vossos progressos, se ando sempre na vossa frente?
A CIÊNCIA - Tu, andar! sonhadora da eternidade, desdenhaste demais a terra, teus pés estão dormentes.
A FÉ - Sou carregada por meus filhos!
A CIÊNCIA - São cegos que carregam um outro, cuidado com os precipícios!
A FÉ - Não, meus filhos não são cegos, muito pelo contrário, desfrutam de dupla visão, vêem por teus olhos o que tu podes demonstrar para eles na terra e contemplam, pelos meus, o que lhes mostro no céu.
A CIÊNCIA - O que a razão pensa disso?
A RAZÃO - Penso, ó caras mestras, que poderíeis realizar um apólogo tocante, o do paralítico e o do cego. A ciência censura a fé por não saber andar na terra, e a fé diz que a ciência não vê nada no céu das aspirações e da eternidade. Ao invés de brigarem, ciência e fé deveriam unir-se: que a ciência carregue a fé e a fé console a ciência, ensinando-lhe esperar e amar.
A CIÊNCIA - Essa idéia é bela, mas é uma utopia. A fé dir-me-á absurdos, e eu quero andar sem ela.
A FÉ - O que é que chamais de absurdos?
A CIÊNCIA - Chamo de absurdos as proposições contrárias às minhas demonstrações, como, por exemplo, que três são um, que um Deus fez-se homem, isto é, que o infinito fez-se finito. Que o Eterno morreu, que Deus puniu seu filho inocente pelo pecado dos homens culpados...
A FÉ - Não digas mais nada. Externadas por ti, essas proposições são, de fato, absurdos. Por acaso sabes o que é o número em Deus, tu que não conheces Deus? És capaz de raciocinar sobre as operações do desconhecido? És capaz de entender os mistérios da caridade? Devo ser sempre absurda para ti, pois se entendesses minhas afirmações, elas seriam absorvidas por teus teoremas; eu seria tu, e tu serias eu, para dizer melhor, eu não existiria mais, e a razão, em presença do infinito, deter-se-ia sempre cegada por tuas dúvidas tão infinitas quanto o espaço.
A CIÊNCIA - Pelo menos, nunca usurpes minha autoridade, não me desmintas em meus domínios.
A FÉ - Nunca o fiz, e não posso nunca o fazer.
A CIÊNCIA - Assim, nunca acreditaste, por exemplo, que uma virgem possa ser mãe sem deixar de ser virgem, e isso na ordem física, natural e positiva, a despeito de todas as leis da natureza; não afirmas que um pedaço de pão é não somente um Deus mas um corpo humano verdadeiro, com ossos e veias, órgãos, sangue, de maneira que fazes de teus filhos que comem esse pão um povinho antropófago.
A FÉ - Não é cristão quem não se revolte com o que acabaste de dizer. Isso prova o suficiente que eles não entendem meus ensinamentos dessa maneira positiva e grosseira. O sobrenatural que afirmo está acima da natureza e não poderia, por conseguinte, opor-se a ela, as palavras de fé só são compreendidas pela fé; nada que, em as repetindo, a ciência desnature. Sirvo-me de tuas palavras, porque não tenho outras; mas uma vez que achas meus discursos absurdos, deves concluir que dou a essas mesmas palavras um significado que te escapa. O Salvador, ao revelar o dogma da presença real, não disse: A carne aqui não tem nenhuma serventia, minhas palavras são espírito e vida? Não te apresento o mistério da encarnação como um fenômeno de anatomia nem o da transubstanciação como uma manifestação química. Com que direito gritarias ao absurdo? Eu não raciocino sobre nada do que conheceis; com que direito dirias que eu disparato?
A CIÊNCIA - Começo a te compreender, ou melhor, vejo que nunca te compreenderei. Nesse caso, continuemos separadas, nunca precisarei de ti.
A FÉ - Sou menos orgulhosa e reconheço que me podes ser útil. Talvez também sem mim estarias bem triste e bem desesperada, e não quero separar-me de ti, a menos que a razão o consinta.
A RAZÃO - Não façais isso. Sou necessária a ambas. E eu, que faria sem vós? Preciso saber e crer para ser justa. Mas nunca devo confundir o que sei com o que acredito. Saber não é mais acreditar, acreditar não é saber ainda. O objeto da ciência é o conhecido, a fé não se ocupa dele e deixa-o inteiramente à ciência. O objeto da fé é o desconhecido, a ciência pode buscá-lo, mas não defini-lo; é portanto forçada, pelo menos provisoriamente, a aceitar as definições da fé que lhe é até mesmo impossível de criticar. Somente se a ciência renuncia à fé, renuncia à esperança e ao amor, cuja existência e necessidade são, no entanto, tão evidentes para a ciência quanto para a fé. A fé, como fato psicológico, pertence ao domínio da ciência, e a ciência, como manifestação da luz de Deus na inteligência humana, pertence ao domínio da fé. A ciência e a fé devem, portanto, aceitar-se, respeitar-se mutuamente, até mesmo sustentar-se e socorrer-se nas necessidades, mas sem nunca usurpar uma à outra. O meio de as unir é nunca as confundir. Mas não deve haver contradição entre elas, pois servindo-se das mesmas palavras não falam a mesma língua.
A FÉ - Pois bem! irmã ciência, o que dizeis disso?
A CIÊNCIA - Digo que estávamos separadas por um deplorável mal-entendido e que, doravante, podemos andar juntas. Mas a qual de seus símbolos vais-me associar? Serei judia, católica, muçulmana ou protestante?
A FÉ - Continuarás sendo a ciência e serás universal.
A CIÊNCIA - Ou seja, católica, se bem compreendo. Mas o que devo pensar das diferentes religiões?
A FÉ - Julga-as por suas obras. Procure a caridade verdadeira e, quando a tiver encontrado, pergunta-lhe a que culto pertence.
A CIÊNCIA - Não será certamente ao dos inquisidores e dos carrascos da Noite de São Bartolomeu.
A FÉ - É ao de São João, o Esmoler, de São Francisco de Sales, de São Vicente de Paulo, de Fenelon e de tantos outros.
A CIÊNCIA - Reconheceis que, se a religião produziu algum bem, fez também muito mal.
A FÉ - Quando se mata em nome do Deus que disse: Não matarás, quando se persegue em nome daquele que quer que se perdoe os inimigos, quando se propaga trevas em nome daquele que não quer que se oculte a luz, será justo atribuir o crime à própria lei que o condena? Dize, se quereis ser justa, que, apesar da religião, muito mal foi feito na terra. Mas, também, quantas virtudes ela fez nascer, quantos devotamentos e sacrifícios ignorados? Contaste estes nobres corações de ambos os sexos que renunciaram a todas as alegrias para se pôr ao serviço de todas as dores? Essas obras devotadas ao trabalho e à oração que passaram fazendo o bem? Quem pois fundou asilos para os órfãos e os idosos, hospícios para os doentes, retiros para o arrependimento? Essas instituições tão gloriosas quanto modestas são obras reais de que os anais da Igreja estão cheios; as guerras de religião e os suplícios dos sectários pertencem à política dos séculos bárbaros. Os sectários, aliás, eram eles próprios assassinos. Esquecestes a fogueira de Miguel Servet e o massacre de nossos padres renovado ainda em nome da humanidade e da razão pelos revolucionários inimigos da inquisição e da Noite de São Bartolomeu? Os homens são sempre cruéis, quando esquecem a religião que os abençoa e perdoa.
A CIÊNCIA - Ó fé, perdoa-me então se não posso acreditar, mas sei agora por que és crente. Respeito tuas esperanças e partilho de teus desejos. Mas é pesquisando que eu encontro e é preciso que eu duvide para pesquisar.
A RAZÃO - Trabalha e procura, então, ó ciência, mas respeita os oráculos da fé. Quando tua dúvida deixar uma lacuna no ensinamento universal, permite à fé preenchê-la. Andai distintas uma da outra, mas apoiadas uma na outra, e nunca vos separeis.

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