UMA ESCOLHA
Somos todos rainhas e reis, princesas e príncipes, a bruxa má e o vilão... todos personagens de nossas próprias vidas reais, colocadas aqui, ali ou mais acolá para adiarmos o enfrentamento de nossas atitudes e, principalmente, das consequências de todas elas, que nos afetam e afetam o outro, podendo mudar vidas - as nossas e as de outrem para sempre. Neste salão onde bailam os personagens, o modo de dançar de um valsante, interpretado desta ou daquela maneira pode acabar com a festa. Um ponto de vista é apenas um ponto de vista, mesmo que, aparentemente ele possa estar respaldado em bons argumentos e possuir um ótimo embasamento, ainda assim é somente um ponto de vista, uma interpretação particular sobre algo visto, ouvido ou lido. E todo ponto de vista, sendo uma interpretação, colocado deste ou daquele modo pode criar anjos e demônios - ainda que não sejam e nunca venham a ser - e mudar radicalmente ou para sempre muitas vidas - as nossas e as de outrem.
Nesse momento, deixamos de ser rainhas e reis, princesas e príncipes, a bruxa má e o temível vilão e temos de nos defrontarmos com um único ser, que pode ser maior ou menor do que todos os personagens, mas, certamente é o que somos, o que fomos, o que nos constituiu, aquilo no qual nos transformamos e o que desejamos ou conseguiremos ser a partir daí – nós mesmos, nús, sem figurino, sem máscaras, sem cenografia, sem roteiro. Enfrentarmo-nos a nós mesmos é a tentativa da expurgação dos erros, da culpa e a tentativa da redenção, da reparação. Reparação do que fizemos conosco daquilo que nos foi dado um dia a fazer e reparação do que, fazendo algo conosco, fizemos também aos outros ou vice versa, pois sempre há a ação e reação ou causa e efeito.
Nem sempre a reparação é possível por diversas circunstâncias e pela própria condição humana com suas limitações e imperfeições ou ainda por realmente não haver de fato como voltar no tempo e colar os cacos do cristal e fazê-los uma taça novamente. Mas é possível "pegarmos" todos os nossos personagens e darmos a eles um fim cabal - quer seja de forma generosa ou não e enfrentarmos a única saída existente, ou seja, enfrentarmos a nós mesmos. Não há porta, nem janela, nem fresta, nem saída de emergência ou abrigo subterrâneo.
Há a vida nua e crua à nossa frente e a necessidade premente de nos olharmos com honestidade, olharmos para dentro de nós e nos enxergarmos, olharmos e enxergarmos nossos buracos, nossas mazelas, nossa pele em carne viva, nossas maldades - pequenas ou grandes - conosco e com os outros que causaram ou causam feridas - em nós e nos outros e, na maioria das vezes, sem real motivo para tal, pois é fato que entendemos tudo errado e só enxergarmos o que queremos, até no espelho, pois somos auto referenciais e temos como marca indelével o que nos constituiu psiquicamente em nossa mais tenra idade - e buscarmos uma transformação. Essa transformação - que acaba sendo, de certo modo, uma redenção - é única para cada um e não há receitas de bolo que faça com que uma pessoa consiga se enfrentar e enfrentar seus pântanos, suas matas fechadas, seus desertos, sua água parada com lodo e mal cheirosa.
Mas é preciso encararmo-nos, enfrentarmo-nos e nos transformamos. Isso é fato, pois assim também é tudo o que vive, transformação é movimento e movimento é vida. Se para o bem ou para o mal, dependerá da constituição da subjetividade de cada um, dos referenciais e das representações psíquicas que se conseguiu ou não fazer, como foram e de que maneira se deram essas representações, mas, ainda que a ferro e a fogo, a redenção precisa sair das nossas entranhas, precisa mexer com nossas vísceras e cortar a carne, expondo a alma nua - se não para uma transformação efetiva - pois há quem, por inúmeros motivos que não cabe aqui explicitar, nunca a consegue - pelo menos para saber quem somos e podermos ter a chance de iniciarmo-nos no processo lento e gradativo de pertencer-nos a nós mesmos, caso consigamos nos enfrentar e nos propusermos a essa possibilidade – e indo um pouco mais longe, digo necessidade - de transformação.
Caso contrário, as nossas encenações - e nossos personagens - continuarão causando danos a nós principalmente – pois o fato é que antes de se lançar a brasa, ela queima primeiro a mão de quem pretende lançá-la - aos outros e talvez nunca sairemos de nossos pântanos, ficando a mercê do odor fétido e da visão turva que insistimos em continuar a ter, ou o que é pior, que insistimos em dar o poder ao outro de nos guiar com sua visão, com sua fala, com sua interpretação da vida e, assim, de uma maneira ou de outra é que vamos distorcendo os fatos e os acontecimentos a nosso bel prazer nos afundando cada vez mais nas ilusões.
Visto que o inconsciente desconhece a negação nos tapando os olhos, os ouvidos e nos privando de todos os sentidos e discernimento - ao continuarmos a entender e a fazer tudo completamente errado, pois ainda que o certo e o errado sejam conceituais, há certos e errados em todos nós – todos os que permitem o mínimo de civilidade, de respeito, de ética e de convivência - que, por mais que o mundo queira mudar, eles continuarão a ser certos e errados, continuaremos a ter a terrível possibilidade de criar ilusões baseadas em pontos de vistas e em interpretações e essas ilusões podem mudar completamente o rumo da estória. Transformar as ilusões e destituí-las, destruindo-as é a nossa escolha, a nossa redenção, a nossa reparação - conosco, com o outro e com a vida.
Dessas ilusões, pontos de vistas, interpretações e até criações ou invenções de estórias em cima de questões tão abstratas como essas, podemos concluir que, para tudo na vida, há e sempre haverá muitos lados e muitas coisas envolvidas, principalmente pessoas. Em resumo, mesmo que tudo o que existe na vida tenha dois, três, quatro e um monte de lados, pois não é somente os lados que contam, mas como contam os lados e ainda que existam muitos lados de uma mesma estória, de uma mesma questão ou de uma mesma situação, devemos levar igualmente em conta que, quem dá a sua versão baseia-se somente em sua interpretação, em seu ponto de vista e em como se sentiu, o que não pode ser levado em consideração como uma realidade, na base da veracidade dos fatos.
Ainda que existam muitos lados de uma mesma estória, de uma determinada questão ou situação, há uma premissa básica e que deve ser usada sem cautela e sem moderação, ou seja, se nós não estávamos lá, nós não podemos e não devemos ouvir nada baseado em pontos de vista, interpretações e sentimentos, nem analisar nada, nem julgar nada, nem emitir opinião, nem lançar juízo de valor, nem tomar partido e muito menos fazer com que a nossa interpretação seja uma suposta verdade e levante suspeitas. Inclusive, nos tempos atuais essa atitude qualifica-se como um crime. Por uma questão de ética e de justiça, se não participamos da estória, da situação ou da questão abordada, isentemos-nos, porque nós nunca teremos como saber o que houve de fato, pois repetindo, nós não estávamos lá. Nossas interpretações, nossas ilusões, nossos pontos de vista equivocados ou interpretações e ponto de vistas alheios, não devem estar a serviço de nada, pois não são realmente nada diante da veracidade e da totalidade dos fatos que não tivemos acesso. E, se não tivemos acesso, porque não estivemos lá e nada podemos dizer de fato e de real, uma postura justa e ética de nos calarmos é a nossa redenção, a nossa reparação conosco e com o outro se o tivermos atingido de alguma maneira.
Qual caminho seguir depende de cada um, principalmente no que tange aos seus valores internos, valores que dizem quem é quem, através de escolhas e de atitudes. Mas, uma questão é fato: sempre há uma escolha.
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