KI: O LADO INVISÍVEL DA FORÇA
Existe um campo de energia invisível no universo e dentro de nós preenchido pelo que os orientais chama de ki ou chi. Saber captar e manipular essa energia em um combate é um dos segredos das artes marciais chinesas e japonesas como o kung fu e o aikido. Tomar consciência desse campo implica perceber que o espírito e a matéria são interdependentes.
A tradição que teve como difusores Bodhidharma e Dogen e que talhou o espírito do budismo chan e do kung fu na China e do zen budismo, do budo e do bushido no Japão subverteu o conceito de luta. O combate deixa de ser um ato unicamente mecânico e estratégico com o objetivo de suplantar um oponente ou livrar-se da morte. Torna-se um correlato da luta do homem para controlar sua própria mente-espírito pelo caminho do abandono de seu ego e pela autodescoberta de seu “eu profundo” e imutável, que compartilha com a totalidade do cosmos.
Esta corrente une os séculos de conhecimento da medicina chinesa, as técnicas de combate aprimoradas e enriquecidas e o espírito imóvel da mente zen esculpido pela prática do zazen. Um dos elos dessa tradição ensina como utilizar o campo de energia que está presente não só nos seres vivos, mas também nas coisas inorgânicas do universo: o ki ou chi[1].
A tradução de ki como energia retira boa parte de seu sentido, mas é a palavra ocidental que mais se aproxima de seu significado. O ki circula em nós através dos meridianos, canais que atravessam nosso corpo e correspondem ao trajeto do ki por órgãos e sistemas – o trabalho com os meridianos é um dos pilares da Medicina Tradicional Chinesa (MTC). Segundo a MTC existem origens diferentes para o ki: há o herdado de nossos pais, ou congênito, e o que se absorve dos alimentos, por exemplo, mas o tema é muito amplo e profundo e não possuo conhecimento em MTC. Como sou apenas uma praticante interessada de chi kung[2] e kung fu vou me limitar a uma abordagem pessoal e superficial sobre a relação entre o ki, a respiração e a prática das artes marciais.
O Corpo que Pensa
A conexão entre o corpo, a mente e a respiração é basilar para a prática de qualquer arte marcial. Quando esta conexão atinge seu ponto de equilíbrio a respiração se torna uma fonte de captação de ki. Assim como os exercícios de chi kung e a execução de katis (formas marciais também chamadas de taolu na China e de kata no Japão), o zazen é uma excelente maneira de trabalhar o ki. Deve-se manter a concentração na expiração, que deve ser profunda e lenta, e na região do tantien inferior (centro de força localizado cerca de cinco centímetros abaixo do e cinco centímetros para dentro do umbigo; também chamado de dantien e de hara tanden) de forma natural, não forçada, no zazen, e de maneira mais intensa e consciente nos combates e katis. (Segundo Taisen Deshimaru, seu mestre Kodo Sawaki dizia que o zen e as artes marciais têm o mesmo sabor e são uma e a mesma coisa.)
É a respiração que vai servir de elo entre o corpo, a mente (ou espírito, shin em japonês) e o ki. Mas é shin que vai fazer com que ela se harmonize. A mente aqui não é a mesma da concepção ocidental, autocentrada e racional, mas um determinado “estado de espírito” que abstrai o pensamento especulativo e “pensa sem pensar”: a mente hishiryo, que promove a conexão plena com o corpo. No Shobogenzo[3], Dogen diz que é inútil tentar obter o satori (a iluminação) por via do pensamento consciente, pois o ego bloqueia a percepção da vida cósmica.
Em um combate, a mente “se transfere” para o corpo e guia o ki, mas não da forma que estamos habituados. A ideia de que “a mente se transfere para o corpo” pode parecer uma maluquice rebuscada e sem significado real para quem não pratica zazen ou arte marcial com um mínimo de curiosidade e brio, mas basta a descrição de uma cena corriqueira para torná-la menos extravagante: quantas vezes não reagimos “sem pensar” quando alguém quer nos surpreender pelas costas em uma brincadeira e acabamos machucando o colega? Obviamente existe uma diferença imensa entre uma reação reflexa movida pelo instinto e/ou pela tensão e o estado de concentração a que se chega através de um treinamento, mas o exemplo pode dar uma ideia aproximada do que ocorre.
A percepção do ki, por sua vez, necessita de um estado mental diferenciado. O sensei Kenji Tokitsu destaca que quando o ego (a mente consciente centrada no eu) é reforçado a sensação de ki diminui e que ela aumenta quando a autoconsciência especulativa vai para segundo plano. “Ao estar atenta à sensação de ki a pessoa se dissolve no ambiente; diminui a sensação de ter a própria existência como centro” [4]. O principio é o mesmo do zazen[5].
A Espada de Luz
A história conta que grandes mestres chineses e japoneses eram capazes de operar maravilhas com o ki. No século XIX o estadista e praticante de budo Katsu Kaicho relatou que a espada do grande mestre espadachim Shirai Toru emanava uma esfera de luz, fato confirmado por outros praticantes.
Outro espadachim, chamado Yamaoka Tesshu, era devotado à prática do zazen. Sua maestria no dojo só se igualava a sua pobreza e ele possuía dois apelidos, “Tetsu Vestido de Trapos” e “Tetsu Demônio do Dojo”. Ele dividia a casa com uma imensa família de ratos. Conta-se que seu ki se desenvolveu tanto com o zazen que inicialmente os ratos paravam de se mover e de fazer barulho enquanto ele meditava e com o tempo passaram “a dançar em volta de seu zafu”. Já li em mais de um livro que, dada sua dificuldade e nível de concentração, o zazen é como um kati; um kati com uma única posição.
Geralmente o método da energia para se chegar ao ki é visto como oposto ao método do kata. Contudo, assumir uma postura precisa com a sensação de um centro é uma forma de kata no sentido rigoroso do termo. Na realidade, trabalhar por essa postura bem definida é um meio de chegar ao objetivo formulado pelo caminho; e na prática dessa simples postura há um certo numero de estágios nos quais postura e representações mentais se condensam em um[6].
O chi kung, a prática marcial e o zazen, como citado, são formas de captar e manipular o ki internamente; o corolário desse desenvolvimento da sensibilidade é a capacidade de reconectar com o mundo a nossa volta e perceber o ki no ambiente externo, seja emanado de um objeto, um animal ou de uma pessoa (ou oponente em uma luta).
A tradição marcial japonesa possui o conceito de “seme” cuja tradução literal seria o de “ofensa” mental, mas que está mais próximo de uma finta, ou simulação de um ataque. O combate de seme é baseado em uma noção específica de espaço chamada de “ma” onde o ki é projetado por via das técnicas marciais. O objetivo de seme é provocar uma perturbação no equilíbrio mental do oponente não propriamente com um gesto ou golpe “telegrafado”, mas com a projeção de energia. Praticantes avançados de budo são capazes de desconcertar o oponente apenas com a emanação do ki, sem a necessidade de nenhum gesto; neste nível a técnica é chamada de “kizeme”.
O Exílio da Natureza
Ao longo da história o homem foi perdendo sua conexão com o mundo natural, o conforto do mundo moderno, no qual não precisamos caçar e nem lutar por alimento (pelo menos não de forma literal) e nem “ler” a chegada de uma tempestade na umidade do ar e na força do vento fez com que prescindíssemos de nossos instintos mais básicos. Essa mesma “civilização” promoveu uma espécie de hipertrofia mental, baseada na conceituação e na linguagem, um “esquecimento” do corpo como totalidade integrada em favor de sua instrumentalização estética e sexual e um isolamento do homem não só do mundo natural, mas também de seu semelhante. As “qualidades primitivas” da intuição, do instinto, da sensibilidade e da “participação” na natureza ligadas ao pensamento não verbal foram desse modo estigmatizadas como não científicas e relegadas, não sem preconceito, à esfera da mística e das doutrinas “alternativas”.
No Ocidente, e em parte do Oriente Próximo, por outro lado, as religiões reveladas (Cristianismo, Judaísmo e Islamismo) em sua forma institucionalizada exilaram a comunhão com essa energia no reino do transcendente. A “graça”, a “luz” e o “Espírito Santo” só nos chegam do Além – e sempre como uma dádiva na qual não temos papel ativo. As correntes místicas ligadas à ideia de imanência, de participação com o sagrado, sempre correram o risco de apostasia, em especial no cristianismo, e muitas delas não se tornaram heresias por pouco, como no caso da doutrina franciscana.
A negação do corpo e sua identificação como algo ligado à corrupção e ao pecado (a ideia da queda adâmica), particularmente nas religiões oriundas do cristianismo como o catolicismo e o protestantismo, também contribuiu para o rompimento de nossa conexão com as forças telúricas e cósmicas. No Extremo Oriente, no entanto, o caminho rumo à divindade não demarca um objetivo final: o dharma é vivido no percurso. Esse caminho deve ser percorrido não apenas pela alma, como ocorre na cultura religiosa ocidental, mas também pelo corpo.
No Hannya Shingyo[7] está escrito que os fenômenos geram ku, o vazio, e que ku gera os fenômenos. Os mestres zen explicam que isso significa que todos os fenômenos são iguais, que o mundo fenomênico e o mundo invisível de ku se interpenetram e são intercambiáveis. Segundo mestre Taisen Deshimaru, a consciência universal é a origem da intuição. “A intuição não vem somente do consciente, ou do sistema nervoso voluntário, mas, sobretudo do sistema vegetativo e do conjunto de células nervosas do corpo, ligadas ao cérebro interno”. A reflexão de mestre Deshimaru sobre o zazen resume o ponto de vista:
Zazen significa fixar-se no centro da ordem do universo, do cosmos. Pela prática do zazen, aqui e agora, através de todo nosso ser, existimos no centro do sistema cósmico. Esta é a mais alta dimensão que podemos alcançar. Esta verdade não pode ser alcançada através de uma concepção puramente materialista ou puramente espiritualista. Uma terceira concepção do universo seria a fusão destas duas visões; não uma mescla, não um equilíbrio, mas uma profunda harmonia, porque o espírito e a matéria não estão separados, são interdependentes como no ser humano[8]
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