
Caminho do Meio (Madhyama Pratipad, em sânscrito) é uma tradicional
expressão budista que procura, de um modo sucinto, apontar o rumo
àqueles que se propõem a dar seus primeiros passos em direção à
sabedoria ou, pelo menos, ao alívio de seus conflitos.
É uma das imagens que brotam espontaneamente na alma sempre que ela é
atormentada pelo Conflito dos Opostos, vale dizer, conflito de desejos
ou necessidades que aparecem como absolutamente excludentes. É uma
metáfora, uma das imagens recorrentes em todas as épocas e culturas sob
as mais diversas formas e denominações, pois que representa um poderoso
determinante da alma humana: o arquétipo da União (Conjunctio)
especificamente a União de Opostos (Conjunctio Oppositorum, como diziam
os alquimistas, em latim), a mais radical das uniões.
Digo a mais
radical porque os opostos não se justapõem ou se mesclam simplesmente,
como bananas num cacho ou tintas numa palheta de pintor, nem se deixam
reduzir um ao outro por submissão violenta ou a golpes de raciocínios
bem intencionados. Os opostos são o que são: opostos. Mas quando somos
pegos pelo calor do embate que eles travam em nossa alma, imediatamente o
arquétipo de União é ativado (tenhamos ou não consciência dele)
lançando-nos à estranha aventura de reconciliar o irreconciliável. Tal
aventura é inescapável pois que significa, se não a cura, ao menos
alívio para um intenso sofrimento.
O arquétipo ativado traz
esperança de calma, ordem no caos, inspira nobres ideais, mostra agora
um pouco de felicidade ou a promete para um futuro próximo, alimenta
utopias, fascina, alenta, convida a alma a não desesperar-se, encoraja-a
a prosseguir entre as dificuldades. No entanto, ele também se manifesta
por dúvidas, inseguranças, culpas, remorsos, depressões, ansiedades,
estresses, e que tais.
E, também, por uma estranha teimosia que
parece realimentar o processo de sofrimento. Mas não. É aquela aventura,
também estranha, que exige as teimosias, obsessões, persistências,
certezas, paranóias, manias, indiferenças, preconceitos, e outras coisas
mais, para que nos mantenhamos no caminho e não percamos o rumo.
Assim, talvez, possamos perceber algum sentido em meio a tanto sofrimento e... talvez, vislumbrar o alívio.
As margens de um caminho não são opostas por si mesmas, tornam-se
opostas em função do ponto de vista do caminhante. O lado direito e o
esquerdo são os do caminhante, não os do caminho. Vale dizer, os da alma
do caminhante, que facilmente projeta neles suas tensões em conflito. E
é bom que o faça, pois a metáfora do caminho traz consigo diagnósticos e
esperanças de transformação.
Senão, vejamos: o lado direito e o
esquerdo fazem às vezes de lados bom e mau, certo e errado, reto e
torto, claro e escuro, consciente e inconsciente, esposa e amante, etc.
No caminho se vai para frente ou para trás, se progride ou regride, há
futuro e passado, se tem rumo ou se está perdido, ele está impedido ou
desimpedido, os obstáculos são fáceis de serem transpostos ou muito
difíceis, ele é perigoso ou nem tanto, se estamos só ou acompanhados, se
nos ajudam ou não, se aguardamos a próxima curva, a próxima vila, ou se
voltamos já. E será ainda possível o retorno? E a bifurcação? E a
decisão numa encruzilhada? Muitas estórias... Espelhos onde a alma se
reflita, se veja, reflita e se retoque.
Os opostos só existem na
alma. Quando os lados direito e esquerdo de um caminho voltarem a ser
apenas os lados direito e esquerdo de um caminho, então o caminhante
estará em paz. E o arquétipo de União terá cumprido o seu desígnio.
Caminho do Meio é uma expressão que sugere evitar os caminhos extremos,
cuidado, consideração aos dois lados da questão, atenção. Isso lembra
os gregos.
Os gregos antigos ensinavam a temperança, a prudência, o
bom senso, a moderação, a modéstia como um estado de espírito calmo e
são (Sophrosyne). Esta era uma virtude que se contrapunha à Hybris que
significava o contrário: desmedida, excesso, orgulho, insolência,
impetuosidade, desenfreio, ultraje, insulto, desespero... violência!
Nada em excesso, recomendavam seus mestres, contando maravilhosas
estórias de homens e heróis castigados pelos deuses por conta de seus
excessos.

Observa-se um benefício simples e ancestral da arte
de unir opostos (é uma arte!) contemplando, por exemplo, a tensão de um
arco retesado prestes a lançar a sua flecha (criada pela aproximação das
duas extremidades “opostas” da haste de madeira unidas por um cordel) e
a perícia do atirador em acertar o seu alvo (nem para cima demais ou
para baixo, nem demais para a direita ou a esquerda).
Outro exemplo ainda mais simples e mais ancestral ainda: o homem, a mulher, e seus filhos.
Observemos também os cuidados de afinação das cordas de um instrumento
musical: não podem ser frouxas ou tensas demais. Esta foi exatamente a
imagem que Buda usou ao tentar mostrar aos seus cinco ex-companheiros de
rígido ascetismo que o corpo (e a mente) não deve ser agradado ou
desagradado em excesso. É preciso encontrar o Caminho do Meio.
.O caminho budista por excelência (Marga). Uma visão tântrica.
O caminho do Meio é conhecido na tradição budista como a Quarta Nobre Verdade, vejamos rapidamente as outras três:
A Primeira -- duhkha aryasatya (nobre verdade sobre a dor) -- anuncia
que todos os seres vivos sofrem. Sofrem quando nascem, sofrem quando
envelhecem, sofrem quando adoecem, sofrem quando morrem. Sofrem quando
não se unem àqueles que amam ou se unem àqueles que odeiam, e sofrem
quando deles se separam. Sofrem quando não conseguem realizar os seus
desejos. Sofremos, metidos todos que estamos numa realidade que se
transforma incessantemente. Insatisfação sem fim. A impossibilidade do
descanso garantido. Só a insegurança não passa: o meu mundo não
permanece, o meu corpo não permanece, eu mesmo não permaneço.
A
Segunda – duhkha samudaya aryasatya (nobre verdade sobre a origem da
dor) -- denuncia o desejo, a sede (trishna) de existir, de viver, sede
de prazer, sede de poder, como a causa de todo o sofrimento. Desejamos a
permanência do nosso mundo, do nosso corpo e de nós mesmos. Desejamos
não só a permanência como ampliá-la, protegê-la. Estamos apegados a umas
tantas coisas que temos por essenciais ou agradáveis que lutamos todo o
tempo para que elas não se vão. Mas elas se vão. Mais cedo ou mais
tarde, e não se deixam conservar. O desejo se reproduz, vai de um a
outro, e nos lança numa interminável corrente de dor: desejo de ser isto
e de não ser aquilo, desejo de prazer e de não sofrer, de permanecer,
não morrer. O desejo é a fonte de toda a ilusão, que por sua vez reforça
o desejo, num ciclo vicioso infernal. O desejo alimenta a noção
ilusória de um “eu” permanente e substancial que é “quem” sofre. É o
suporte da dor, e a ela dá continuidade.
O desejo se acende e arde
nas duas paixões que se opõem: o amor e o ódio, e se alucina com a
própria ilusão que produz! -- O amor, desejo ardente de união (raga),
representado no imaginário budista por um galo, ou uma pomba -- O ódio,
desejo ardente de repulsão (dvesha), representado por uma serpente. -- A
ilusão, desejo ardente de não saber (avidya), ignorância, indiferença,
preguiça, indiferenciação, inconsciência, indiscriminação, loucura,
confusão (moha), representada por um porco, é o desejo de dissipação,
que de tão dissipado já, pode nem mais aparecer como desejo. Atração,
Repulsão e Indiferença – dois caminhos opostos e um pseudo caminho do
meio -- são os chamados Três Venenos, Os Três Males.
A sede de
existir, de viver, que começa e continua em ilusão, engano e dor,
recomeça incessantemente a sua sina através dos sucessivos ciclos de
renascimentos.
A Terceira – duhkha nirodha aryasatya (nobre
verdade sobre a cessação da dor) -- prenuncia a libertação do
sofrimento, o alívio da dor: se não nos apegarmos ao mundo, ao corpo e a
nós mesmos, então não sofreremos jamais! Extinguindo o desejo faremos
cessar a dor. Extinção do desejo, do apego, da sede de existir, do “eu”,
do ciclo de renascimentos, da ilusão, enfim. Quando a chama se
extingue, quando se foi o último alento, quando já não houver mais o
sopro, ex- (nir) soprado, (vana) -- apagado de um sopro -- expirado
(nirvana) estará o prazo da chama, do pavio, da vela. Extinguiu-se o
incenso. Não há mais ações (karma) que exijam ter continuidade ou desejo
de as ter.
Elimine-se a causa que desaparecerá o efeito. Lógico e
simples, não é mesmo? Lógico e simples demais... Na prática, porém,
muito provavelmente porque não somos Budas, seja talvez impossível
andarmos assim tão desapegados pela existência a ponto de não sofrermos
nem ao menos um tiquinho. Mas também não precisamos e nem devemos nos
exigir tanto, pois seria um excesso, e paradoxalmente estaríamos
alimentando um desejo, ficaríamos apegados a uma mera idéia, mesmo que
ela seja uma idéia tão nobre. A vida concreta e cotidiana é, muitas
vezes, mais generosa que a mente abstrata dos filósofos e sacerdotes em
sua demanda das coisas absolutas. Se conseguirmos sofrer bem menos e
esse sofrimento não nos afastar do caminho, já está muito bom.
Resumindo:
Primeira Nobre Verdade – Todos os seres sofrem.
Segunda Nobre Verdade – A causa do sofrimento é o desejo
Terceira Nobre Verdade – A cessação do desejo faz cessar o sofrimento.
Quarta Nobre Verdade – O Caminho do Meio faz cessar o desejo.
Ao contrário da nossa compulsão de viver, de ser, de ter, do nosso medo
e pânico a respeito da morte, o budismo propõe a extinção, não a teme,
almeja-a. Mas essa extinção não é, simplesmente, a morte do corpo, que é
uma das formas materiais (rupa) e que é muito fácil de acontecer, mas
também a morte da alma, como podemos entender a palavra sânscrita para
nome (naman), o que, para os budistas, é muito mais difícil de
acontecer. s significa o conjunto das cinco sensações (vedana),
provenientes dos cinco órgãos voltados para fora, ou instrumentos do
exterior (bahir-karana) – olho, nariz, ouvido, língua, pele; as
representações mentais dessas sensações, ou percepções (samjna); as
conscientizações dessas percepções (vijnana); e a assim chamada mente,
considerada um sexto órgão de conscientização, voltado para dentro, ou
instrumento do interior (antar-karanam), formada pela atenção seletiva
ou “intelecto” (manas), a atividade do ego (ahankara), o discernimento
(buddhi). Em suma, características que configuram o que conhecemos por
psique, alma.
A extinção do conjunto de nomes-e-formas (namarupa), a
unidade psicossomática, alma-e-corpo, se dá ao longo de um caminho que
pode durar muitas vidas, tantas quantas forem necessárias até que o
não-saber (avidya), a ignorância, a escuridão, o sono, o sonho, a
ilusão, cesse e ceda lugar à sabedoria (vidya), deixe surgir a
iluminação (boddhi) .
Caminhar pelo Meio é, pois, a arte de ir-se
eliminando apegos pela vida a fora, e vida a dentro. É procurar não
sofrer e não fazer sofrer. É procurar não estar enlaçado a uma coisa nem
a seu oposto. É escorrer, fluir como água entre uma margem e a outra.
Mesmo que as águas fluam com excessiva rapidez e esbarranquem as margens
que a contêm, observe, sofra, mas tenha calma, não se desespere,
espere, não há pressa.
Atenção para uma importantíssima diferença:
Caminho do Meio não é o mesmo que caminho medíocre.
Não é cinzento, sombrio ou morno. Ele cheira e fede. Vão nele as Marias-sem-as-outras.
Não é atalho para hipócritas, nem o refúgio de ambíguos. Estes, e os
confusos, perdem-se nele logo à vista da primeira encruzilhada.
Passar entre dois extremos não é o mesmo que evitar os extremos. As
águas de um rio não evitam as suas margens, ao contrário, apoiam-se
nelas! Um trem não evita os trilhos que lhe dão o rumo.
Pelo Caminho do Meio sobe-se às mais altas montanhas e se desce aos vales mais profundos. Por ele se vai ao céu e ao inferno.
É a coluna central, flexível como a da serpente, que se comunica com todas os aspectos da tragédia humana.
É o fio da meada.
Nele, há calor e frio. Macho e fêmea. Há fraqueza e força. Espírito e matéria. Tudo e nada. Há vida e há morte.
Nele, somos tolos e sábios, inteiramente luz e inteiramente treva. Não
há meio-a-meio, é isto tudo e mais tudo aquilo. É inteiro e completo
como a natureza é.
O Caminho do Meio tem os extremos.
O caminho medíocre teme os extremos.
Não há como confundi-los: a virtude da temperança inclui temperos,
temperaturas, não é insensível nem insípida, é plena de sabores,
comporta mil saberes. Provar, conhecer o sabor, é saber. Saborear é o
ofício do sábio.
Uma outra distinção merece ser feita:
Caminho do Meio não é o mesmo que meio do caminho.
Ele não nos leva a lugar algum. Na verdade, não é um caminho por onde
se passe para chegar a um outro lugar mais distante, é um caminho onde
se chega. Estar nele, caminhando, é já ter chegado.
Estamos sempre
no meio do caminho quando estamos sempre evitando alguma situação e
ansiando por alguma outra. Um lugar lá atrás, um outro mais lá na
frente. Sempre alguma coisa no passado e sempre alguma outra no futuro.
Assim, estamos sempre no meio...
Observem, agora, esta passagem sutil: ESTAMOS SEMPRE NO MEIO.
Perceber que sempre estamos no meio do caminho, que sempre estivemos e
estaremos sempre, é entrar no Caminho do Meio. Um caminho que, se
podemos dizer conduza a algum lugar, conduz a ele próprio. Algo assim
como caminhar tranqüilo na intimidade da própria casa.
Um caminho o
mais reto possível que nos leve o mais rapidamente possível a algum
lugar distante e exótico, para fora ou para dentro de nós, e ainda para
mais além dos nossos mesquinhos problemas e insatisfações, não é o
Caminho do Meio, embora seja exatamente assim que uma quantidade enorme
de budófilos (os apegados ao Buda) o compreenda.
Qualquer caminho
leva a todos os outros caminhos, o que vale dizer que levam todos a si
mesmos, a diferença está no jeito com que se caminha.
O viajante
estará perdido se tentar encontrar algo diferente de si mesmo, já que na
verdade, é só o que ele encontra constantemente.
Um budista
senta-se à sombra de uma árvore e descansa. Descansa de si mesmo, em si
mesmo. Ao reiniciar sua caminhada caminhará sentado, sabendo que por
mais longe ele chegue, por mais que ande, estará sempre ali, chegado.
Tornará sempre a si mesmo, àquele mesmo descanso, à sombra mesma daquela
árvore.
Ora, um caminho que nos traz de volta sempre ao mesmo ponto, certamente não é um caminho reto, mas de natureza curva, circular.
Caminhar em círculos, eternamente, sem chegar a parte alguma, parece
coisa de louco, ou pelo menos de alguém completamente perdido. E é
mesmo. Mas é isso o que fazemos normalmente, sem o saber, agarrando-nos a
objetivos provisórios aos quais conferimos valor perene: uma profissão,
um cargo público, um casamento, um filho, uma conta no banco, uma
religião, um amor, um ideal político... Nos enganamos assim, e sofremos
muito quando o que parecia eterno se esvai impiedosamente diante dos
nossos olhos incrédulos.
Quando sabemos disso, quando sentimos seu
gosto, seu estranho sabor, então já não é mais possível crer em metas
ilusórias tendo-as por verdadeiras. Imediatamente já não estamos mais na
periferia de nós mesmos, mas chegados a uma espécie de Centro surgido
inesperadamente do nada (ou do tudo) que nós somos.
Caminho do Meio é o caminho do Centro.
Nele encontram-se todos os extremos. Nele todos os extremos se apoiam.
Dele jorram todas as diferenças. Aqui já não há (ou ainda não há) a
terrível luta entre os opostos. Estes, no Centro, de alguma forma, se
ajeitam por si mesmos.
Um bicho acuado entre dois monstrengos pode,
no máximo, escapar com alguma habilidade, fazer algum tipo de
malabarismo, algum equilibrismo, ser hábil, esperto -- o que é bom --
mas não propriamente um sábio, um Desperto (Buddha). Não escapará de si
mesmo, e tornará a encontrar os monstrengos, até cansar ( e descansar)
no Centro...

O Caminho do Meio é representado no budismo por
uma roda de carroça com oito raios e um centro vazio. Os oito raios, que
se “opõem” entre si, representam os oito caminhos principais (é
infinito o número de oposições possíveis) que ligam a periferia da roda
ao seu centro. Por isso o Caminho do Meio é também chamado de O Nobre
Caminho Óctuplo (aryastangamarga).
Imaginemos que estamos todos
amarrados a uma enorme roda de carroça em movimento; que tentamos
faze-la parar quando chegamos no alto, aliviados da dor, e sentindo
prazer mesmo que saibamos que outros de nós, lá embaixo, no extremo
oposto, estraçalham-se em sofrimentos e desejam com ardor que a roda se
mova.
Imaginemos que essa roda não pára nunca e, em breve, voltará a
nossa vez de suportarmos o alívio dos outros, e o peso dessa lei
inexorável.
Se não tentamos nos enganar, e aos outros, veremos
cruamente que é mesmo aí onde estamos metidos e daí não se sai fácil,
não se sai falso.
Ser verdadeiro é muito difícil pois embora sendo
esta uma grande virtude, o que ela expõe aos olhos da consciência
costuma ser muito assustador, mormente aquela dança macabra que é o
drama oculto no majestoso girar da Roda da Existência, Roda da Vida, ou
Roda do Vir-a-Ser (Bhavachakra).
Encontrar um jeito de ser o
que se é mesmo. Eis nossa tarefa! Ser autêntico da melhor forma
possível. Estar no centro das próprias contradições, revelá-las, deixar
que elas tramem alguma arte.
O que há de comum em cada um dos oito
caminhos é exatamente a autenticidade. Na verdade, os oito caminhos são
um só: ser próprio, não imitar, ser igual a si mesmo, autêntico. Não se
trata de obedecer a um código de regras prefixadas em busca do
comportamento perfeito.
A palavra sânscrita samiak e a sua
equivalente páli samma significa algo como “completo em si mesmo” e pode
ser traduzida nas línguas ocidentais por right, richt, proper, perfect,
certo, direto, direito, reto, correto, pleno, perfeito, próprio,
completo, inteiro, integral, puro, verdadeiro, autêntico, etc. Com
exceção dos adjetivos reto, certo, direto, direito (right, richt) – que
sintomaticamente revelam a compulsiva impaciência ocidental para tratar
das questões da alma – os demais têm uma conotação mais próxima do
sentido original, mais rotunda, mais cheia, plena de suas partes.
Eu
prefiro autêntico, porque esta palavra, embora seja também muito mal
usada e compreendida, pois parece justificar quaisquer ações, palavras
ou pensamentos, é a que reclama mais atenção para o que se faça, fale ou
pense. Portanto, exige mais responsabilidade. O que fazemos
espontaneamente pode ser bom ou muito ruim para nós mesmos e para os
outros. Depende do que se tem na alma.
A atenção dilui os impulsos nefastos e... concentra-se (junta suas partes no centro).
Se somos autênticos, por qualquer dos caminhos chega-se ao centro, e de lá a todos os outros, rapidamente.
Abaixo seguem os oito caminhos, em sânscrito, com a tradução que me
parece a mais adequada e algumas outras possibilidades; entre aspas o
sentido aproximado de algumas palavras sânscritas; e em itálico a
tradução para o inglês.
1º- Compreensão autêntica (samyag drishti) – concepção, visão, view.
2º- Decisão autêntica (samyak samkalpa) – determinação, resolução, resolve.
3º- Fala autêntica (samyag vak) – “palavra”, discurso, linguagem, speech.
4º- Conduta autêntica (samyak karmanta) – “ações”, action.
5º- Sustento autêntico (samyak ajiva) – “enquanto se vive”, meio/modo de vida, trabalho, livelihood.
6º- Empenho autêntico (samyag vyayama) – aplicação, esforço, effort.
7º- Atenção autêntica (samyak smirti) – mindfulness.
8º- Contemplação autêntica (samyak samadhi) – “absorção”, fixação, meditação, concentration.
Compreender, decidir, falar, agir, sustentar-se, empenhar-se, prestar
atenção (ouvir), contemplar. Autenticamente. Isto é, sem fingir.
Até mesmo o fingir pode ser autêntico, e quando o é, podemos nos perceber artistas.
Tais caminhos por serem autênticos, verdadeiramente não se opõem. Mas
não só esses oito, mostrados desde o início pela tradição budista. Se
autêntico, podemos acrescentar: caminhar, tomar chá, lutar, comer,
plantar, cozinhar, enfeitar, vestir-se, fazer amor, conversar, cantar,
dançar, pintar, sofrer, morrer... e tudo o mais.
Nada podemos fazer
para sermos autênticos. Imagine uma girafa esforçando-se para ser
girafa. Não há normas para o Caminho do Meio, nem mesmo esta. Com as
normas podemos apenas criar um personagem qualquer, que possa até ser
muito útil e interessante a nós mesmos ou aos outros, mas não seremos
necessariamente autênticos.
Podemos tentar apenas não ser falsos.
Mergulhar em nossa mediocridade, profundamente, e chafurdamos nela até o
limite do nojo. Podemos também, depois disso, sentarmo-nos sobre a
pedra que há no meio do caminho e ali, então, descansar, talvez
verdadeiramente.
O Caminho do Meio é um tesouro invisível. Surge à imaginação enquanto ainda não o encontramos, ou quando já o perdemos.
O medíocre meio do caminho tem a peculiaridade de ser bem visível, principalmente nos outros e aos outros.
Não sabemos tanto o que é a verdade quanto sabemos ser a mentira. Nos
enganamos mais facilmente quando lidamos com a verdade, mesmo quando
tentamos ser honestos. Nossas certezas costumam mostrar-se precárias com
o passar do tempo. No entanto, sabemos quando mentimos.
É, pois,
mais fácil (?) falar da mediocridade que da sabedoria, já que é possível
vê-la. Por aí devemos começar. O Caminho do Meio virá por si mesmo, e
por si mesmo irá embora se não soubermos andar por ele.
Por ser assim tão invisível, é também chamado o Não-Caminho.
Estamos acostumados a parar de caminhar apenas quando já chegamos, mas
aqui trata-se justamente do oposto: chegamos quando paramos de caminhar!
Quem busca estará sempre no meio do caminho.
Quem encontra estará sempre no Caminho do Meio.
O próprio Caminho do Meio, portanto, não pode ser buscado jamais,
apenas encontrado. Tudo o que se encontra nos remete a ele, mesmo as
coisas mais desprezíveis.
O caminho que nos leva não entre os
opostos, mas através deles; o caminho que nos leva não para longe dos
extremos, mas para dentro deles, este é o Caminho do Meio.
No
centro da Roda do Vir-a-Ser, no olho mesmo da confusão, aqui, bem no
meio do caminho, alucinados pelo desejo, possuídos pela paixão,
agarrados às coisas do mundo, sofridos, radicais, imperfeitos, pecadores
... há uma flor.
Há uma flor agora.
Há um belo e puro lótus, desses que crescem nos pântanos mais imundos.
Sobre ele senta-se em paz o Desperto.