SHIVA E O YOGA
Shiva é um personagem único na tradição do hinduísmo. Ele anda nu pelas montanhas dos Himalaias ou apenas coberto com a pele de um tigre. Seu corpo está sempre coberto de cinzas, que se justificam como um lembrete de que tudo na vida se reveste da morte e da destruição. Uma espantosa serpente se enlaça ao redor de seu pescoço azulado, como emblema dos ciclos sem-fim e da eternidade, e os cabelos muito longos, enrolados em uma trança, mal conseguem represar a caudalosa corrente do rio Ganges que ali se oculta – emblemática imagem da força vital e da incessante marcha do tempo. Em sua fronte, sobre as sobrancelhas, apresenta o crescente lunar, como um adorno que representa a restauração da vida do deus Soma (a Lua).
De seus quatro braços, dois seguram objetos mágicos e dois exibem graciosos mudras (gestos energéticos) que removem o medo ou oferecem bênçãos. Os objetos mágicos mais frequentes são o pequeno tamborete damaru com o qual ele estabelece o ritmo da dança da natureza (tandava, a dança furiosa dos elementos); o poderoso tridente trishula (que, lançado à terra com um dos seus dentes, marcou o local de fundação da cidade de Varanasi – a cidade mais sagrada do hinduísmo shaiva); um machado chamado parashu (que ele depois ofereceu a Parashurama – o herói vaishnava); a lança pashupata com o qual ele é capaz de destruir todas as eras e todos os mundos (e que depois ele presenteou a Arjuna); e a maça khatvanga, adornada por um crânio humano. Seus três olhos enxergam tudo o que existe, o que já existiu e o que ainda não veio à existência. Um colar de crânios é às vezes exibido, o que dá a ele o apelido de Kapalin (ou seja, aquele que está relacionado com os crânios).

Shiva é também um andarilho que caminha à noite sob as estrelas e aparece nos cemitérios e nas aldeias com o pênis escandalosamente ereto, despertando o desejo nas esposas celibatárias dos brahmanes da floresta. No entanto, é o personagem que tem a família mais estável entre os grandes deuses do panteão hindu. Sua esposa Parvati e seus filhos Ganesha e Karttikeya são um modelo de dedicação à família (kulam), razão pela qual as tradições preservadas pelas famílias mais místicas (o Tantra) acabaram por incorporá-lo como patrono de suas artes. De fato, ele se tornou o patrono das artes em geral e da dança teatral em particular – de onde vem sua representação clássica como o Rei dos Dançarinos (Nataraja).
Shiva é um personagem no qual as contradições são aceitas como um fato inevitável e os problemas são transformados em solução. É por meio das contradições que se explica a dinâmica da criação da vida, pela união perfeita dos opostos bem como pela utilização heurística dos paradoxos para resolver todos os impasses que atormentam o indivíduo dentro de sua comunidade. Shiva cresceu rapidamente na imaginação popular ainda no período das Upanishads e se tornou um deus soberano, que, por ser asceta, propunha a perfeição como meta de vida. Sua doutrina popular básica é conhecida como Siddhanta (literalmente, doutrina) e se baseia principalmente nas crônicas dos Puranas – livros que detalham a história mítica do mundo.
SHIVA E O YOGA
Diz a tradição que Parvati convenceu Shiva a inventar o Yoga por compaixão. A vida é dura. A felicidade geralmente é esquiva. Nós adoecemos, ficamos velhos e morremos. Nós nos tornamos vítimas da ilusão de que isto é tudo o que existe. Ao compreender como é difícil manter a perspectiva, Parvati pediu a Shiva que inventasse um sistema que ajudasse as pessoas a lidar com o inevitável sofrimento inerente à vida de um ser humano, e ele fez isso. Portanto, ele é honrado como o primeiro professor de Yoga, e ela como a primeira aluna. Na condição de professor universal Dakshinamurti, ele se senta no monte Kailash, no ponto mais setentrional da Índia, de frente para o sul (dakshina, em sânscrito) olhando para baixo para o mundo inteiro, uma das mãos erguidas no gesto que significa: “Não tenho medo”.
Shiva é conhecido como o destruidor, na trindade indiana de Brahma (criador), Vishnu (preservador) e Shiva; mas o que ele destrói é a negatividade, a ilusão, as coisas que devem desaparecer para dar espaço às novas criações e a um nível mais elevado de consciência. A noção de Shiva destruindo e recriando o mundo em ciclos eternamente repetitivos reaparece na cosmologia do século XX com a teoria da relatividade de Einstein, e com a descoberta de que nossos corpos estão destruindo e renovando as próprias células de um modo contínuo; nós somos completamente transformados a cada sete anos.
Considera-se que Shiva inventou 84 asanas básicos para ajudar as pessoas a purificar o corpo e prepará-lo para a meditação. Esse tipo de Yoga é chamado de Hatha Yoga, que significa um Yoga que envolve energia e determinação, onde a disciplina física, nos prepara para a disciplina mental e espiritual da meditação, o Raja(régio) Yoga.

Quem pratica Yoga sabe que esta prática envolve todo o ser. Não é possível separar, de maneira cirúrgica, a mente do corpo; o que se faz com o corpo afeta a mente, as emoções, os neurônios e a química do corpo. Mas ninguém diz: “Ah, consegui reduzir a acidez de meus gases sanguíneos!”, após uma prática satisfatória; em vez disso a pessoa dirá: “Puxa, eu me sinto ótimo!” Só nos é possível tomar consciência de nossa experiência, e a maioria de nós começa com uma consciência pouco apurada. Mas o que se faz no tapete de borracha para Yogaleva-se para a vida e vice-versa. Essa prática é como um espelho da vida. Se alguém estiver fazendo esforço excessivo e abusando, talvez faça o mesmo em outras áreas da vida. É possível conceber, através da prática, um meio de ser um pouco mais compassivo com as próprias deficiências - e com as dos que estão à nossa volta... O Yoga tem a ver, em última análise, com relacionamentos: o relacionamento de espírito e matéria, corpo e alma, intenção e ação, professor e aluno. Somos tanto professor como aluno, em relação a nós mesmos e aos outros também.
Shiva personifica o Um, o ser humano cósmico com infinitas formas, mas uma só essência. Nas histórias, nós o vemos como amante, marido, desolado, guerreiro, homem de família, professor, intercessor pela comunidade, o contemplativo imóvel nas montanhas e o dançarino que se move eternamente nas chamas. Ele é livre para se envolver com todas as coisas, sem ficar limitado por nada. Essa liberdade é o fruto do Yoga.
QUATRO ASANAS DE SHIVA
Shiva não é apenas o senhor da quietude e da contemplação, mas o senhor de tudo o que vive e se move. O Kena Upanishad pergunta o que faz o ouvido ouvir, os olhos verem, os membros se moverem e assim por diante; a resposta a qualquer dessas perguntas poderia ser: “Shiva”. O sábio do século VIII, Shankaracharya, que é às vezes considerado uma encarnação de Shiva, escreveu um lindo poema no qual a alma, passo a passo, passa através de todas as coisas que ela não é num sentido supremo, concluindo, a cada vez: “Eu sou a forma do êxtase, eu sou Shiva, eu sou Shiva”. Shiva, assim, identifica ou dá nome ao nosso nível mais profundo do ser. Podemos pensar na “realidade” como algo que muda constantemente, assume uma forma e depois outra, sempre em processo de transformação de um estado a outro, mesmo quando na superfície parece estar imóvel.
Observemos uma maçã ou uma pedra. Em ambas, as moléculas estão mudando, algumas coisas estão se quebrando e outras formando. No caso da maçã, em uma semana veremos que ela começa a apodrecer, que é uma maneira de mudar de forma, de modo que novas maçãs possam nascer a partir das sementes dela. No caso da pedra, a mudança pode não ser visível durante toda a nossa vida. O princípio que causa a mudança (a qual abrange tanto a morte e a decadência da maçã velha como as sementes que um dia produzirão novas maçãs), esse princípio é Shiva, o Senhor da Dança.
Nas estátuas de Nataraja, Shiva dança sozinho em um anel de fogo. Quando essa imagem tem quatro braços, uma das mãos segura o tambor, que significa tanto o ritmo do tempo como as batidas de nosso próprio coração; a outra gesticula em direção ao seu pé erguido. Uma terceira mão é erguida no abhaya mudra, que lembra o gesto moderno que significa “pare”, mas, nesse caso, significa “não tema”. A quarta está no modo de ensinamento. Um pé, geralmente o esquerdo, está esmagando uma pequena figura disforme, que representa a ação ignorante, ao passo que o outro se ergue, indicando a liberação.
Uma forma particularmente selvagem de sua dança é o tandava, um estilo de pisar, poderoso e muito enérgico, associado hoje em dia com a dança do sul da Índia, parecendo-se a uma forma oriental do flamenco. Algumas pessoas consideram que a dança viajou da Índia para a Espanha em caravanas ciganas. A história diz que a partir da fúria e da ira, Shiva criou o guerreiro Virabhadra quando a sua primeira esposa, Sati, foi morta, e dançou num frenesi de amor e dor com o cadáver dela em seus braços até que Vishnu cortou este em pedaços.
A postura de natarajasana requer força, grande flexibilidade e grande estabilidade. Ela ensina a permanecermos equilibrados mesmo no meio de intensa emoção e atividade, e nos faz lembrar que todos os atos de destruição são seguidos de ressurreição. Ela também nos desafia a reconhecer nossos limites.
Incorporando a postura:
- Fique em pé em tadasana. Expirando, flexione um joelho e leve o pé para trás. Estenda o braço do mesmo lado para trás e agarre o pé ou tornozelo com a mão ou uma correia.
- Mova o cóccix em direção ao chão. Deixe cair o peso da perna dobrada a partir da pélvis, puxando o pé em direção à cabeça, estirando a coxa dianteira.
- Inspire e estenda o braço livre a partir do ombro.
- Expire, ainda segurando o pé, e leve o torso paralelo ao chão, estendendo um braço à frente, segurando o pé erguido com a outra mão.
Alternativas:
- Levante o braço da frente acima da cabeça. Segure o pé erguido com a mão de trás, formando um arco nesse lado do corpo.
- Levante os dois braços acima da cabeça e agarre o pé erguido com ambas as mãos. Puxe as omoplatas para a frente, formando um arco para trás com a parte superior do peito, equilibrando o movimento para a frente do peito com o ímpeto para cima do pé de trás.
- Pratique com as costas voltadas para uma parede; quando erguer o pé de trás, repouse a canela na parede para obter equilíbrio.
- O torso nessas versões permanece ereto.
Sustentando a postura:
- Mantenha as solas dos pés apoiadas no chão; sinta a sua base. Permita que o movimento ascendente da postura se fundamente na firmeza da perna e pé eretos. Onde você sente as linhas de energia equilibrando uma à outra? Como está a sua respiração? Como é a sua expressão facial? A sua postura parece mais uma dança de dor e raiva mantendo-se em face de grande tragédia e estresse, ou parece mais uma dança lúdica que explora seus limites? Onde percebe a sua respiração mais claramente nessa postura?
Soltando a postura:
- Desfaça-a delicadamente. Expirando, solte o pé e abaixe-o até o chão. Traga os braços um de cada lado. Permaneça em tadasana com conforto.
Um dos nomes mais queridos de Shiva é Chandrashekara (Aquele com a Lua em seu Cabelo). A lua crescente move-se como um ornamento em seu cabelo abundante e preso em cima, junto com o rio Ganges, com cobras e às vezes um crânio: às vezes essas coisas parecem bastante amontoadas. A lua, como a cobra, é um símbolo antigo de renascimento e regeneração. Ela representa a natureza passageira, embora cíclica, do tempo.
A cosmologia indiana é baseada no conceito de ciclos que surgem, desaparecem e se iniciam novamente. Isso ocorre num nível macrocósmico, onde um ciclo pode envolver milhares de anos, bem como o micronível humano e observável. Shiva encarna o ciclo cósmico; a lua representa o ciclo humano.
As criaturas restringidas pelas limitações da existência física estão presas pelo tempo. Shiva não está. Shiva representa a ausência de formas a partir da qual todas as formas surgem. Quando um ciclo termina, cósmico ou individual, seus elementos são reabsorvidos neles, apenas para serem reformados e recriados, como uma lua nova que se manifesta no céu noturno.
Este, em resumo, é o sentido da palavra sânscrita darshana: você vê Deus, ou uma imagem que representa o divino para você, e você é visto. Um poema infantil diz: “Eu vejo a lua, a lua me vê; Deus abençoa a lua e Deus abençoa a mim”. A Lua no céu e eu aqui na Terra existimos em relação um ao outro. A bênção chega com o reconhecimento da relação.
Como foi que a lua se prendeu no cabelo de Shiva? Foi um dos resultados da batida vigorosa do Oceano de Leite. Bem no início deste ciclo de tempo, os devas (anjos bons) e asuras (anjos rebeldes) uniram forças para bater o Oceano e Leite em busca de amrita, o néctar da imortalidade. O monte Meru serviu como o poste de bater e a serpente Vasuki, como a corda de bater. Vishnu, o Sustentador do Universo, assumiu a forma de uma tartaruga para manter a montanha no lugar em suas costas, e impedir que ela afundasse no mar. Todos os tipos de tesouro surgiram durante o batimento do oceano: Lakshmi, a Deusa da Riqueza, que se casou com Vishnu; Kamadhenu, a Vaca Realizadora dos Desejos; Chandra, a Lua; e, de maneira inesperada, uma névoa mortalmente venenosa surgiu, que queimava os olhos e pulmões de todos e ameaçava destruir toda a vida antes mesmo de amrita poder ser descoberta. Para salvar todos eles, Shiva inalou a névoa venenosa e a manteve na garganta para não engoli-la. Mas até mesmo o Senhor do Universo é afetado por suas ações; ele era forte o bastante para que o veneno não o matasse, mas este queimava a sua garganta de maneira terrível, manchando a pele, para sempre, de azul escuro. Por gratidão, e para refrescar a queimadura, a lua foi viver em seu cabelo.....var mais